terça-feira, 16 de março de 2010

CAPÍTULO 10 - História e Conhecimento do Passado

HISTÓRIA E CONHECIMENTO DO PASSADO


“Para resumir, não pode existir história "do passado da forma como ele de fato aconteceu"; somente podem existir interpretações, e nenhuma com caráter final; e cada geração tem o direito de estabelecer a sua própria. Não tem apenas o direito de criar suas próprias interpretações, mas também tem uma certa obrigação de fazê-lo, pois existe uma questão a ser respondida. Nós queremos saber como nossos problemas estão relacionados com o passado, e desejamos ver a linha ao longo da qual podemos progredir para a solução daquilo que sentimos, e que escolhemos, como nossas principais tarefas”.(Karl R. Popper. The open society and its enemies. Vol. 11. Londres, Routledge & Kegan Paul, 1980, cap. 25, p. 268).


Introdução


Neste texto, pretende-se apresentar alguns aspectos da teoria do método da história, no sentido de argumentar que ela implica uma interpretação engenharial do tipo de conhecimento que é possível sobre o passado e daquilo que podemos fazer com o conhecimento da história.

A teoria do método em história será reconstruída aqui com base em três posições. Primeiramente, pode-se argumentar em favor da tese de que existem algumas diferenças entre a estrutura das explicações que são construídas em história e a das ciências naturais, pois o modelo de explicação baseado na formulação de uma lei geral ("covering law model of explanation") não pode ser utilizado nas explicações históricas.

A segunda tese é que existem certos aspectos dos fatos históricos que os tornam particularmente importantes para considerações de ordem metodológica. A idéia de que os fatos não podem ser freqüentemente repetidos, e que as teorias históricas têm forte influência no ponto de vista do coletor desses fatos, pode facilmente conduzir à idéia de que as teorias históricas não são testáveis e, conseqüentemente, não são científicas.

Finalmente, aqui será argumentado que as teorias da história, como "interpretações gerais", não são científicas, devido a seu caráter circular e sua irrefutabilidade. Porém, como "interpretações específicas", elas têm algum mérito determinado.

Essas posições serão aqui examinadas para se chegar à conclusão que há sustentação para a tese de que as explicações utilizadas pela história são científicas. Porém, não existe uma ciência histórica propriamente dita. Nesse sentido, a atividade do historiador estaria mais próxima da "engenharia" do que da produção de conhecimento teórico.

No que se refere às explicações históricas, elas são aqui consideradas em termos de "tecnologia social", de forma diferente, portanto, do que haveria de ser
concluído se fosse possível argumentar em favor da existência de uma ciência da história. Isto é, o conhecimento histórico é aqui considerado como um certo tipo de ciência aplicada. Nesse sentido a tarefa dos historiadores pode ser considerada próxima daquilo que fazem os engenheiros. Da mesma forma como ocorre com estes últimos, eles estariam interessados em prognósticos e não em explicações.

Essas teses, embora tenham sido desafiadas em muitas ocasiões, não foram ainda exaustivamente discutidas. Neste texto, pretende-se reforçar a sugestão de que existem boas razões para explorar a "concepção engenharial" do trabalho do historiador e as suas implicações para a metodologia de trabalho em história.


1.


Existem certas limitações à aplicação do princípio da unidade do método científico ao campo da ciência histórica. O que isso significa é que, embora se possa aceitar a tese da unidade de método entre as ciências sociais e as ciências naturais, existem limitações para a tese da identidade de método entre as ciências naturais, as ciências sociais e a história.

Podem ser apresentados dois importantes argumentos para provar que existem diferenças na estrutura da explicação causal em ciências teóricas (tais como a sociologia, a teoria econômica, a teoria política etc.), de um lado, e a ciência histórica, de outro.

Com o primeiro argumento pretende-se demonstrar que (a) a história é caracterizada por seu interesse em eventos atuais, específicos ou singulares, e não em leis ou generalizações.(1)

E, no segundo argumento procura-se demonstrar que: (b)aquelas leis universais que a explicação histórica usa não fornecem um princípio seletivo e unificador, não indicam um "ponto de vista" para a história.

O primeiro argumento (a) apareceu pela primeira vez na obra de K. Popper intitulada “The poverty of historicism”, em 1957. O segundo argumento (b) pode ser encontrado no livro de K. Popper intitulado “The open society and its enemies”, em 1945. Embora tenham sido produzidos em tempos diferentes, é muito difícil separar esses dois argumentos.

Ambos pressupõem uma visão específica da explicação científica. Assim,
dar uma explicação causal de um certo evento significa derivar dedutivamente uma proposição (que será chamada previsão), que descreve esse evento, usando como premissas da dedução algumas leis universais juntamente com certas sentenças singulares ou específicas às quais podemos chamar de condições iniciais. Por exemplo, podemos dizer que demos uma explicação causal do rompimento de um certo fio se sabemos que esse fio seria capaz de suportar um certo peso, e que um
peso maior que esse foi colocado sobre ele.

Assim, os componentes estruturais de uma explicação científica podem ser encontrados no exemplo fornecido acima. Ademais, se analisarmos essa explicação causal, então, notaremos que dois constitutivos diferentes estão envolvidos nela: 1) Assumimos algumas hipóteses que têm o caráter de leis naturais universais; em nosso caso, talvez seja: "sempre que um certo fio é submetido a uma tensão superior, a uma certa tensão máxima, característica para aquele fio em particular, então ele se romperá". 2) Assumimos algumas proposições específicas (as condições iniciais) referentes ao evento particular em questão; em nosso caso, podemos ter duas afirmações: "para este fio, a tensão característica máxima, com que ele poderá se partir, é igual ao peso de um quilo”, “o peso colocado sobre este fio possui dois quilos de peso". Portanto, temos dois diferentes tipos de afirmativas que, juntos, constituem uma explicação causal completa, a saber: 1) proposições universais com o caráter de leis naturais; e 2) proposições específicas referentes ao caso especial em questão, as condições iniciais.(4)

A principal conseqüência metodológica da estrutura das explicações científicas é a dedutibilidade das conseqüências, com base nas condições iniciais. Assim, as leis, juntamente com as condições iniciais, formam as premissas desse silogismo, cuja conclusão é o enunciado que descreve um prognóstico sobre o evento.

Assim, das leis universais podemos deduzir, com a ajuda das condições iniciais, a seguinte proposição específica: "esse fio se romperá". Essa conclusão podemos também chamar de uma previsão. As condições iniciais (ou, mais precisamente, a situação descrita por elas) são costumeiramente chamadas de causa do evento em questão, e a previsão (ou melhor, o evento descrito pela previsão) como o efeito: por exemplo, podemos dizer que colocar um peso de duas libras sobre um fio capaz de suportar somente uma libra teria sido a causa do rompimento do fio.


2.

A posição aqui apresentada parte da idéia de que existe uma distinção fundamental (" ... tão freqüente e enfaticamente reafirmada pelos melhores historiadores...") entre as ciências históricas e as ciências teóricas. Essa distinção consiste em que, enquanto as ciências teóricas estão principalmente interessadas em encontrar e testar leis universais, as ciências históricas consideram seguras todas as leis universais e estão principalmente interessadas em encontrar e testar proposições particulares.(6)

O argumento consiste em afirmar que aquilo que constitui a segunda parte da proposição - isto é, que as ciências históricas consideram seguras todas as leis universais e que estão principalmente interessadas em encontrar e testar proposições particulares - é perfeitamente compatível com a análise do método científico anteriormente apresentada.

Podem ser construídas duas descrições da estrutura lógica das explicações históricas. No primeiro caso, dado um evento singular, as ciências históricas podem buscar as condições iniciais, que juntamente com as leis universais (e Popper acrescenta " ... as quais podem ser de pouco interesse...") explicam o referido evento singular.(7)

No segundo caso, as ciências históricas podem estar voltadas para o teste de uma hipótese particular. Isso significa que essa hipótese singular pode ser usada, juntamente com outras proposições singulares, como uma condição inicial, baseada na qual pode-se recorrer a leis universais no sentido de deduzir alguma previsão nova "... que pode descrever um evento acontecido no passado distante, que pode ser confrontado com a evidência empírica ...... tal como documentos, inscrições etc.” (8)

Isso tudo permite a Popper concluir seu argumento afirmando que “...é somente em história que estamos realmente interessados na explicação causal de um evento particular. Nas ciências teóricas, tais explicações causais são principalmente um meio para diferentes fins - o teste de leis universais.” (9)

Contudo, esse argumento não pode ser tomado como suficiente para demonstrar a existência de uma distinção metodológica entre as ciências históricas e as ciências teóricas, conforme parece ser o que pretende Popper, pois o argumento infere que determinadas características psicológicas dos historiadores seriam suficientes para apontar a existência de certas particularidades da estrutura lógica das explicações em história. Essa inferência parece, contudo, indevida.

O argumento de Popper parece assumir que aquelas características baseadas nos aspectos psicológicos dos historiadores, que procuram por explicações históricas, têm significado metodológico. Quando ele propõe que a história se caracteriza por seu interesse em eventos particulares, ele está descrevendo o mecanismo psicológico que opera quando as pessoas fazem explicações históricas. Isso porque o interesse das explicações históricas depende das intenções das pessoas.

Dessas considerações, pode-se concluir que essa descrição não corresponde à estrutura lógica do conhecimento histórico. Isso significa dizer que, da análise dos mecanismos psicológicos que são utilizados pelas pessoas quando fazem explicações históricas, não se pode concluir que existam distinções metodológicas entre as ciências históricas e as ciências teóricas.

O próprio Popper defende em outra passagem que a distinção entre o uso de uma teoria para o propósito de explicação, ou predição, ou teste, depende de nosso interesse. Ela depende daquilo que consideramos como nosso problema, daquilo que assumimos, ou tomamos como garantido. Não existe diferença na estrutura lógica das teorias usadas para diferentes propósitos.

O ponto central da crítica que aqui se pretende estabelecer ao argumento de Popper consiste em que, quando ele afirma que "a história é caracterizada por seu interesse em eventos singulares", ele está se utilizando de uma descrição do processo psicológico de certos historiadores.

Ademais, ainda que pareça razoável supor que os historiadores não estão interessados na formulação de leis históricas universais, isso não dispensa as explicações históricas de estarem fundamentadas em leis universais. Só nesse sentido se poderia falar em explicações científicas (explicações causais) em história. Como diz o próprio Popper: “... um evento singular é a causa de outro evento singular - que é o efeito apenas em relação a algumas leis universais.”(10)

Portanto, as leis universais são necessárias em qualquer explicação científica. Apesar do interesse que os historiadores têm por eventos singulares, isso não os dispensa da necessidade lógica de recorrer a leis universais. Popper afirma:
“... via de regra, se estamos interessados em eventos específicos e em sua explicação, tomamos como certas as várias leis universais que julgamos
necessárias.” (11)

Dessa forma, se necessitamos de leis universais para produzir uma explicação científica, então, não há fundamento para a afirmativa de que os historiadores usam leis universais, mas estão interessados em eventos particulares. Esse seria um assunto psicológico, sem qualquer significado metodológico.

Essa noção do caráter psicológico das ciências históricas é claramente indicado na seguinte passagem: “Essa visão da história torna claro por que tantos estudantes de história e seu método insistem que é o evento particular que os interessa, e não qualquer lei histórica universal. A generalização pertence simplesmente a uma linha de interesse diferente, que pode ser claramente distinguia daquela que se interessa por eventos específicos e sua explicação causal, que se constitui no interesse da história. Aqueles que estão interessados em leis devem voltar-se para as ciências generalizantes (a sociologia, por exemplo). Nossa visão também torna claro por que a história tem sido tão frequentemente descrita como "os eventos do passado como de fato aconteceram". Essa descrição traz à tona o interesse específico do estudante de história, como oposto àquele de um estudante de ciência generalizadora, apesar de que devamos apresentar certas objeções a isso.” (13)

O que aqui se pretende argumentar é que Popper parece correto quando estabelece que os historiadores não dispõem de leis universais de natureza histórica. Portanto, que os historiadores não se utilizam de leis históricas em suas explicações causais de eventos singulares. As leis são tomadas como certas, sem maiores considerações. Contudo, o argumento não é suficiente para justificar a impossibilidade da formulação das leis históricas. Se essa objeção estiver correta, então, pode-se dizer que o argumento de Popper está correto quando indica o caráter engenharial do conhecimento histórico. Porém, ele se engana em tentar justificar a impossibilidade de leis universais em história, oferecendo a posição insustentável de que isso decorre do interesse manifesto pelos historiadores quando constroem suas explicações causais.

Popper argumenta que os historiadores estão interessados na explicação causal de um evento específico e na descrição de eventos específicos enquanto tais.(14) Desse ponto de vista, os historiadores têm duas tarefas importantes: o desembaraçamento das ligações causais, pela consideração do evento como um fato típico; e a descrição de acontecimentos interessantes, enfatizando a peculiaridade do evento, e descrevendo-o como único. (15)

Nesse sentido, qualquer explicação científica de tendências históricas, e todos os testes de leis históricas, serão excluídos do domínio das ciências históricas.

Parece que o conceito de história implicado no argumento de Popper envolve a posse de habilidades técnicas muito mais próximas das necessárias em engenharia, arqueologia, contabilidade do que aquelas que são úteis na produção de ciência pura. (16)

No argumento, Popper afirma que, em seu procedimento, as ciências históricas pressupõem o caráter instrumental das leis universais. Ele diz: “As ciências históricas, pode-se dizer, não apresentam uma atitude isolada na forma como consideram as leis universais. Onde quer que ocorra uma aplicação da ciência a um problema especifico ou singular, encontramos uma solução parecida. O químico prático, por exemplo, que deseja analisar um certo composto - um pedaço de pedra- dificilmente considera qualquer lei universal. Em vez disso, aplica, provavelmente sem pensar muito, certas rotinas técnicas, que, de um ponto de vista lógico, são testes de uma hipótese singular como a seguinte: "Este composto contém enxofre." Seu interesse é principalmente histórico
a descrição de um conjunto de eventos específicos, ou de um corpo físico individual. (17)


3.


No segundo argumento, se pretende provar que existe distinção entre a função da leis gerais nas ciências generalizantes e nas ciências históricas. O argumento é que, nas explicações históricas, as leis universais envolvidas não fornecem um "ponto de vista" para a história.

Popper inicia alegando que a explicação científica tem caráter seletivo. Ele afirma: “Mesmo a ciência não é um mero "coas de fatos". Ela é, em última instância, uma coleção e, como tal, é dependente do interesse do coletor, depende de um ponto de vista. Em ciência, esse ponto de vista é habitualmente determinado por uma teoria científica; isto é, selecionamos dentre a infinita variedade de fatos, e da infinita variedade de aspectos dos fatos, aqueles fatos e aqueles aspectos que são interessantes porque estão mais ou menos ligados com alguma teoria científica preconcebida.

O argumento é que existe uma infinita riqueza e variedade nos possíveis aspectos do mundo que podem ser estudados. Contudo, temos apenas um número finito de palavras. Assim, toda descrição será sempre uma seleção de fatos que podem ser potencialmente descritos. Não há como evitar essa situação.

Essa situação é comum a todas as ciências. Popper afirma que isso é enfaticamente verdadeiro no caso das descrições históricas. Ele afirma: "Portanto, em história, assim como em ciência, não podemos evitar a necessidade de um ponto de vista". (19)

Popper assegura que existe uma diferença entre a "parte exercida" por um "ponto de vista" em história e aquela exercida por um "ponto de vista" nas ciências naturais. Nas ciências naturais o "ponto de vista" é usualmente representado por uma teoria científica que pode ser testada pela procura de novos fatos. (20) Dessa forma, as teorias fornecem um "ponto de vista" ou determinam o caráter seletivo das ciências naturais. Contudo, isso não é tão simples em história, pois não podem existir leis históricas; as leis que a história eventualmente usa são tiradas de outras ciências, tais como a sociologia, a economia ou a política. Por essas razões, em história, o problema de seu "infinito objeto" está marcantemente presente.

Em história, somos confrontados, muito mais do que nas ciências generalizantes, com o problema de seu "infinito objeto", porque as teorias ou as leis universais da ciência generalizante introduzem unidade, bem como um "ponto de vista"; elas criam, para toda ciência generalizante, seus problemas e seus centros de interesse, bem como de pesquisa, de construção lógica e de apresentação. Mas, em história, não temos essas teorias unificadoras, ou melhor, a totalidade das leis universais triviais que usamos são tidas como seguras; elas são praticamente sem interesse e totalmente incapazes de trazer ordem ao assunto. (21)

A conclusão desse argumento é que, nas ciências históricas, as leis universais que são usadas pela explicação histórica não fornecem um “ponto de vista" para a história. Dessa forma, esse "ponto de vista" só é fornecido em um sentido muito limitado pela natureza do objeto particular em consideração, tal como a história do poder político, a história das relações econômicas, a história da matemática etc.

Antes de examinar algumas das implicações que seguem-se do argumento apresentado, vejamos uma crítica geral do método utilizado por ele quando afirma a existência de limitações à aplicabilidade do método científico em história.
Parece que, em seu primeiro argumento (a), quando alega que a história só se interessa por eventos singulares, Popper se baseia no pressuposto de que não existem leis históricas. No segundo argumento (b), no qual pretende provar que as leis universais envolvidas nas explicações históricas não fornecem um "ponto de vista" para a história, isto é, que não existem leis históricas, ele assume que a história só se interessa por eventos singulares. (22)

A conclusão de Popper para o argumento "b" tem dois corolários. O primeiro refere-se à natureza dos fatos históricos e o segundo volta-se para a natureza das teorias históricas.

4.


Popper argumenta em favor da tese de que "várias teorias históricas são, em seu caráter, muito diferentes das teorias científicas". A razão para isso é que a história sofre limitações muito especiais no que se refere aos fatos a sua disposição, pois: a) os fatos históricos não podem ser repetidos segundo nossa vontade e b) são coletados de acordo com um ponto de vista preconcebido.

Assim, a diferença entre as teorias científicas e muitas teorias históricas consiste em que estas são "teorias não-testáveis". O argumento completo afirma o seguinte: “Agora, é importante constatar que várias "teorias históricas" (elas seriam melhores descritas como quase-teorias) são, em seu caráter, amplamente diferentes das teorias científicas. Porque, em história (incluindo as ciências naturais históricas, como a geologia histórica), os fatos a nossa disposição são frequentemente muito limitados e não podem ser repetidos ou implementados conforme nosso desejo. E eles foram coletados de acordo com um ponto de vista preconcebido; as "fontes" da história registram apenas tais fatos, conforme pareçam interessantes para serem registrados, de forma que a fonte haverá de, frequentemente, conter apenas os fatos que sejam conformes com a teoria preconcebida. E na hipótese de não haver mais fatos disponíveis, será freqüentemente impossível testar essa teoria ou alguma teoria dela decorrente. Tais teorias históricas não-testáveis podem, então, ser acusadas de serem circulares, no sentido em que essa acusação tem sido injustamente feita contra as teorias científicas.” (23)

Esse argumento, contudo, não parece suficiente para a conclusão à que pretende chegar. As restrições sugeridas por Popper em “a" e "b" poderiam ser igualmente referidas a várias teorias científicas. Nesse sentido, diversas teorias científicas poderiam ser tidas como "não-testáveis". Muitas teorias científicas são dependentes de fatos que não podem ser repetidos ou implementados segundo nosso desejo. Existem fatos em biologia, geologia, astronomia, entre outras, cuja ocorrência não dependem de nossa vontade. Ademais, o próprio Popper afirma, em outra passagem, que a ciência não é meramente um "corpo de fatos", mas uma coleção de fatos que dependem do "ponto de vista do coletor". (24) E, dessa forma, todos os fatos em ciência foram coletados de acordo com um "ponto de vista" preconcebido.

Certamente, existem diferenças entre os tipos de fatos para os quais está voltada cada ciência. Mas disso não se segue que os fatos históricos são caracteristicamente diferentes dos fatos dos quais se socorrem as ciências naturais. Portanto, da consideração da natureza dos fatos não nos parece apropriado concluir pela afirmativa de que há justificativa para distinções ou limitações metodológicas às ciências históricas. Contudo, algumas diferenças em seus enfoques certamente influenciaram o desenvolvimento das ciências. É preciso que se constate que algumas ciências se desenvolvem mais facilmente do que outras, porque se envolvem com problemas mais fáceis de resolver. (25)


5.


Popper distingue dois tipos de teorias históricas: as "interpretações gerais" e as "interpretações específicas". Por "interpretação geral", entende-se as teorias históricas não-testáveis, que se caracterizam por serem circulares, isto é, são teorias para as quais os fatos só são anotados se concordam com a teoria. Essas interpretações de fatos históricos só contêm aqueles fatos que já foram interpretados pela teoria preconcebida. A circularidade de tais teorias históricas consiste, portanto, em sua relação com os fatos. Os únicos fatos disponíveis para testar a teoria são aqueles estabelecidos ou escolhidos sob a luz da própria teoria. Portanto, para essas "interpretações gerais", os fatos não podem fornecer base nem para refutação nem para confirmação. Popper diz:
“As interpretações são importantes desde que representem um ponto de vista. Mas vimos que um ponto de vista é sempre inevitável, e que, em história, uma teoria que pode ser testada e tem, portanto, caráter científico só raramente pode ser obtida. Logo, não devemos pensar que uma interpretação geral pode ser confirmada por sua concordância mesmo que seja com todos os nossos registros, pois devemos lembrar de sua circularidade, bem como do fato de que sempre haverá uma variedade de outras (talvez incompatíveis) interpretações, que concordam com os mesmos registros e que raramente podemos obter novos dados, capazes de servir, como os experimentos cruciais em física. (26)

A conclusão do argumento é que deveríamos abandonar a ingênua idéia de que: "...qualquer conjunto definido de registros históricos pode sempre ser interpretado de uma única forma.” (27) Com essa análise, Popper pretende estabelecer bases para sua tese de que as teorias históricas, diferentemente das teorias científicas, deveriam ser consideradas "interpretações gerais". Ele, então, argumenta que tais "interpretações gerais" são circulares ou teorias não-testáveis.

Contudo, o argumento não parece ter sucesso em estabelecer boas razões para as supostas limitações metodológicas das explicações em história. Se aceitamos a tese popperiana de que a falseabilidade das teorias depende de seu caráter lógico, então, por que motivos as teorias históricas não poderiam ser construídas em termos falseáveis? Bastaria que as teorias históricas fossem construídas de tal forma que os requisitos lógicos da falseabilidade fossem satisfeitos. (28)

Popper parece correto quando argumenta que só raramente somos capazes de obter novos dados que sirvam de experimentos cruciais em física. Contudo, não é impossível que esses novos dados sejam encontrados e, de fato, eles têm sido encontrados. Portanto, nada impede que também sejam obtidos experimentos cruciais em história.

Não parece bem sucedido o esforço argumentativo de Popper para provar que existem limitações ou impedimentos lógicos e metodológicos para a construção de explicações científicas em história.

Popper também argumenta que existe um outro tipo de teorias históricas, que ele identifica como "interpretações específicas". Ele admite que as interpretações históricas variam em seu mérito. O que lhes dá mérito é a evidência em favor de cada hipótese histórica singular. Popper diz: ”Pode haver uma quantidade considerável de progresso, mesmo no campo da interpretação histórica. Ainda mais, podem existir todos os tipos de estágios intermediários entre "pontos de vista" mais ou menos universais e as hipóteses históricas específicas ou singulares acima mencionadas, que têm o papel de condições iniciais hipotéticas e não de leis universais na explicação de eventos históricos. Freqüentemente, elas podem ser suficientemente testadas e são, portanto, comparáveis a teorias científicas. Mas algumas dessas hipóteses específicas parecem muito semelhantes àquelas quase-teorias universais que chamei de interpretações, e podem ser classificadas, com elas, como "interpretações específicas". Porque a evidência em favor de tais interpretações específicas possui freqüentemente caráter tão circular como a evidência em favor de algum "ponto de vista universal.” (29)

O argumento afirma que se pode ter progresso no campo da interpretação histórica e que isso é possível porque: a) "Existem sempre interpretações que não estão realmente de acordo com os registros aceitos"; b) "Existem algumas [interpretações históricas] que necessitam de um número de hipóteses auxiliares mais ou menos plausível para que escapem da falsificação causada pelos registros"; e c) "Existem algumas [interpretações históricas] que são incapazes de ligar um certo número de fatos que uma outra interpretação pode conectar e, portanto, explicar". (30)

Contudo, se seguimos o argumento de Popper anteriormente apresentado, "a" parece impossível de acontecer, porque, se assumimos a circularidade das interpretações históricas, então, nunca acontecerá de uma interpretação contrariar os fatos, posto que estes são sempre registrados em concordância com as teorias. Conseqüentemente, a posição "b" será falsa, porque não existirão registros falseadores de uma interpretação histórica. E, finalmente, "c" será também falsa, porque toda interpretação histórica só haverá de considerar como fatos aqueles que ela interpreta e explica como tais.

Como conseqüência de sua teoria da circularidade (ou não-testabilidade) das teorias históricas, Popper defronta-se com o problema de oferecer um critério de escolha entre duas interpretações históricas concorrentes e incompatíveis. Ao fazer isso, ele recorre a uma curiosa distinção entre "interpretação" e "ponto de vista". Popper argumenta que as interpretações históricas podem ser incompatíveis, mas não podem sê-lo quando consideradas como "cristalizações de pontos de vista". O argumento inteiro é o seguinte: “Afirmei que as interpretações podem ser incompatíveis, mas, desde que as considere, meramente, como cristalizações de pontos de vista, então, elas não o serão. Por exemplo, a interpretação de que o homem persistentemente progride (em direção à sociedade aberta ou a outro objetivo) é incompatível com a interpretação de que ele retrocede ou anda para trás. Mas o "ponto de vista" de alguém que examina a história humana como a história do progresso não é necessariamente incompatível com aquele de alguém que a olha como a história do retrocesso; isto é, poderíamos escrever uma história do progresso humano para a liberdade (contendo, por exemplo, a história da luta contra a escravidão) e outra história de retrocesso e opressão humanos (contendo, talvez, coisas como o impacto da raça branca sobre as demais raças); e essas duas histórias não necessitam ser conflitantes; em vez disso, poderiam ser complementares uma da outra, corno o seriam duas visões de uma paisagem vista de dois diferentes pontos.” (31)

Em seu argumento, Popper distingue entre "interpretações" e "pontos de vista", alegando que as primeiras são "cristalizações" dos segundos. Dessa distinção, seria possível estabelecer o critério de distinção entre teorias históricas concorrentes, isto é, ao serem consideradas como meros pontos de vista cristalizados, as interpretações deixariam de ser incompatíveis e, portanto, já não seriam concorrentes. Continuariam como irrefutáveis. (32)

Contudo, o argumento de Popper não satisfaz, porque recorre ao conceito de "cristalização", para dele inferir uma conseqüência de natureza metodológica. Como se esse conceito fosse capaz de expressar uma mudança na natureza das interpretações, de tal forma que interpretações incompatíveis, ao serem tomadas como "cristalizadas", deixariam de sê-lo. No entanto, o argumento não explica como isso é possível.

Daí, pode-se concluir que os argumentos de Popper, estabelecendo limitações metodológicos ao princípio da unidade de método entre as ciências históricas e as ciências naturais, não têm grande sucesso, isto é, Popper não consegue oferecer bons argumentos que, baseados na análise da natureza das teorias históricas, permitam-nos concluir pela necessidade de tais limitações.

Popper insiste no caráter provisional das interpretações históricas. Contudo, isso seria também característico das ciências naturais. Os objetivos que Popper estabelece para as teorias históricas seriam igualmente desejáveis para as ciências naturais. Ele diz: “A coisa mais importante é ser consciente e crítico, do ponto de vista de cada um, isto é, evitar, na medida do possível, preconceitos inconscientes e, portanto, não-críticos na interpretação dos fatos. Em qualquer sentido, a interpretação precisa falar por si mesma; e seus méritos serão sua fertilidade, sua habilidade de elucidar os fatos da história, bem como seu interesse tópico, sua habilidade de elucidar os problemas atuais.” (33)




Conclusão



Neste texto se defendeu a idéia de que existe unidade de método entre as ciências naturais e sociais, isto é, que há unidade de método entre elas. Assim, o método da ciência é único, a saber: o método conjectural por meio de tentativa e eliminação do erro.

Contudo, Popper pretende estabelecer limitações especiais para a aplicação do método das ciências naturais ao campo de estudo das ciências sociais. Assim, a ciência social seria o resultado de uma certa análise parcial associada com análise crítica, isto é, a ciência social resulta de um enfoque tecnológico, ou tecnologia social parcial, ou engenharia parcial.

Essas limitações decorreriam, ainda, das teses que: a) a ciência social não pode usar teorias historicistas, holísticas ou globais; h) os modelos racionais em ciências sociais são completamente diferentes daqueles das ciências naturais; c) as situações sociais podem ser estudadas em termos de "lógica da situação"; e d) a ciência social pode trabalhar com o pressuposto da total racionalidade da ação humana.

Neste texto foi discutida a tese popperiana de que não existe possibilidade da história como ciência pura. A única coisa que podemos obter por meio das explicações históricas é um certo tipo de "interpretações específicas", que expressam um "ponto de vista". O que aqui se sugeriu é que os argumentos de Popper não parecem suficientes para garantir essa posição. Contudo, isto não invalida sua sugestão de que não temos, de fato, uma ciência histórica análoga às demais ciências teóricas.

A posição de Popper parece implicar que o conhecimento científico pode ser distribuído em uma hierarquia onde as ciências naturais estão em primeiro lugar. Elas constituem a ciência de primeira classe. Em segundo lugar, estão as ciências sociais, que empregam o mesmo método das ciências naturais, com algumas limitações decorrentes da natureza de seu objeto e de suas teorias. Em último lugar, estão as explicações históricas, que, juntamente com as explicações tecnológicas, constituem o enfoque tecnológico ou engenharial da realidade. Nesse sentido, a história seria um tipo de engenharia da atividade humana.



Notas e referências


1.POPPER, KARL R. The poverty of historicism. Londres, Routledge & Kegan Paul, 1974, p. 143.

2. Idem. The open society and its enemies. Vol. 11. Londres, Routledge & Kegan Paul, 1980, cap. 25, p. 256.

3. Idem, ibidem, p. 262.

4. Idem, ibidem, p. 262.

5. Idem, ibidem, p. 262.

6. Idem, The poverty of historicism. Londres, Routledge & Kegan Paul, 1974, pp. 143-144.

7. Idem, ibidem, p. 144.

8. Idem, ibidem, p. 144.

9. Idem, ibidem, p. 144.

10. Idem, The open society and its enemies. Vol. 11. Londres, Routledge & Kegan Paul, 1980, cap. 25, p. 263.

11. Idem, The poverty of historicism. Londres, Routledge & Kegan Paul, 1974, p. 145.

12. Idem, The open society and its enemies. Vol. Il. Londres, Routledge & Kegan Paul, 1980, cap. 25, p. 264.

13. Idem, ibidem, p. 264.

14. Idem, The poverty of historicism. Londres, Routledge & Kegan Paul, 1974, p. 145.

15. Idem, ibidem, pp. 146-147.

16. Idem, The open society and its enemies. Vol. 11. Londres, Routledge & Kegan Paul, 1980, cap. 25, p. 263.

17. Idem, The poverty of historicism. Londres, Routledge & Kegan Paul, 1974, pp. 145-146.

18. Idem, The open society and its enemies. Vol. 11. Londres, Routledge & Kegan Paul, 1980, cap. 25, P. 159.

19. Idem, The open society and its enemies. Vol. 11. Londres, Routledge & Kegan Paul, 1980, cap. 25, p. 261.

20. Popper compara a importância do "ponto de vista" em história e em física. POPPER, KARL R. The open society and its enemies. Vol. Il. Londres, Routledge & Kegan Paul, 1980, cap. 25, p. 261.

21. POPPER, KARL R. The open society and its enemies. Vol. 11. Londres, Routledge & Kegan Paul, 1980, cap. 25, p. 264.

22. Popper fornece dois exemplos de explicações históricas, nos quais seriam usadas leis universais triviais, obtidas em diferentes campos que não a própria história. Idem, ibidem., pp. 264-265.

23. Idem, The open society and its enemies. Vol. 11. Londres, Routledge & Kegan Paul, 1980, cap. 25, p. 265-266.

24. Idem, ibidem, p. 259.

25. Idem, Conjectures and refutations -The growth of scientific knowledge. Londres, Routledge & Kegan Paul, 1972, pp. 66-67.

26. Idem, The open society and its enemies. Vol. 11. Londres, Routledge & Kegan Paul, 1980, cap. 25, p. 266.

27. Idem, The open society and its enemies. Vol. 11. Londres, Routledge & Kegan Paul, 1980, cap. 25, p. 266.

28. Idem, The logic of scientific discovery. Londres, Houtchinson & Co., 1959, p. 86.

29. Idem, The open society and its enemies. Vol. 11. Londres, Routledge & Kegan Paul, 1980, cap.25, pp. 266-267.

30. Idem, The open society and its enemies. Vol. 11. Londres, Routledge & Kegan Paul, 1980, cap. 25, p. 266.

31. Idem, The open society and its enemies. Vol. 11. Londres, Routledge & Kegan Paul, 1980, cap. 25, p. 267.

32. Idem, The poverty of historicism. Londres, Routledge & Kegan Paul, 1974, p. 151.

33. Idem, The open society and its enemies. Vol. 11. Londres, Routledge & Kegan Paul, 1980, cap.25, p. 268.

CAPÍTULO 9 - O Método nas Ciências Sociais

O MÉTODO DAS CIÊNCIAS SOCIAIS: A ENGENHARIA SOCIAL FRAGMENTÁRIA




Onde é que nos encontramos hoje? Como são justificadas as exigências da ciência? Que motivos racionais existem - se de fato existe algum - para que uma pessoa concorde com as doutrinas da ciência moderna? Será que os que trabalham em outras disciplinas deveriam se esforçar para fazê-las mais parecidas com a ciência; ou será que as pessoas que trabalham em ciência deveriam finalmente capitular e reconhecer que, de um ponto de vista epistemológico, as exigências de seu conhecimento não são mais seguras do que aquelas propostas em qualquer outra área? De um ponto de vista mais geral, quais são as implicações dos trabalhos revolucionários em filosofia da ciência nas últimas três ou quatro décadas, para a conduta de pesquisa nas ciências sociais "puras" e "aplicadas"? (D.C. Phillips.,Philosophy, science, and social inquiry. Oxford, Pergamon Press, 1987, pp. 3-4)


Introdução



A questão posta como tema central deste texto pode sugerir que ele consistirá de uma exposição detalhada dos diferentes métodos empregados em ciências sociais e da apresentação dos resultados de alguma forma de avaliação desses métodos. Entretanto, o leitor não encontrará nele nem uma coisa nem outra.

Este texto procurará seguir o argumento de Popper em que são apontadas algumas dificuldades dos métodos que assumem que é possível conhecer e experimentar a sociedade como um todo. A recusa do método que considera "as totalidades sociais" prepara a posição de que as ciências sociais só conhecem e experimentam fragmentos da realidade social.

Aqui se pretende apresentar uma concepção engenharial de ciências sociais, que estaria presente na tese que o método de análise social implica uma concepção de ciências sociais em que estas estariam muito mais próximas de um conhecimento do tipo empregado em engenharia de obras do que daquele produzido pela física ou química puras. Assim como o engenheiro de obras, o cientista social usa conhecimentos produzidos em diferentes áreas - como a física, a biologia, a química, a economia etc. Embora ele não esteja impossibilitado de produzir teorias "puras", sua tarefa primordial consiste em resolver problemas, em tentar soluções para os problemas sociais identificados. Dessa forma, o cientista social seria caracterizado como um "elaborador de políticas sociais".


1.


As diferenças metodológicas entre as ciências sociais e as ciências naturais decorrem da diversidade de objetos ou problemas a serem estudados; entretanto, os métodos com que cada uma estuda e seus campos são fundamentalmente os mesmos. (1)

De forma geral, o método da ciência é o hipotético-dedutivo, que consiste em oferecer uma explicação causal dedutiva e em experimentá-la pelos mais diferentes meios. O método hipotético-dedutivo corresponde a uma posição intermediária entre o dedutivismo racionalista e o indutivismo empirista. Os racionalistas, que têm em R. Descartes seu principal representante, entendem que a ciência é fruto da capacidade de conhecer da razão humana. Assim, o correto uso da razão levaria necessariamente à verdade. Os empiristas, dos quais D. Hume seria um exemplo, interpretam a ciência como um conjunto de proposições universais cuja fonte é a experiência particular. Assim, asseguram que, principalmente, pela inferência indutiva é que se constrói o edifício do conhecimento científico.

No método hipotético-dedutivo, vamos conceber a ciência como um corpo de conjecturas de caráter tentativo, isto é, a ciência é um conjunto de teorias e hipóteses com o qual pretendemos atribuir um sentido, ou significado, ao mundo natural. A natureza conjectural da ciência é decorrente do fato de que ela é expressa através de enunciados que podem ser testados pela evidência empírica sem jamais adquirirem o caráter de verdade absoluta, ou definitiva. Os enunciados científicos são identificáveis por seu caráter tentativo. Eles contém respostas que são possíveis de serem oferecidas para certos problemas em um certo momento do tempo.

O método hipotético-dedutivo ou, método da construção de hipóteses, é assim chamado porque não consegue certeza absoluta para nenhuma das proposições científicas que experimenta; pelo contrário, essas proposições sempre conservam o caráter de hipóteses de caráter tentativo, ainda que esse caráter possa deixar de ser óbvio. Isto é, mesmo depois de haver superado um grande número de experimentos, de provas e testes severos as teorias científicas continuam a ser meras hipóteses, ou simples respostas hipotéticas para certos problemas.(2)

A ciência, quer seja natural ou social, constitui-se de explicações cuja natureza é hipotética ou presuntiva. O procedimento científico consiste na construção de um conjunto de proposições sobre o problema, através do qual, de determinadas sentenças que descrevem leis universais, juntamente com as proposições particulares que identificam certas condições iniciais, deduzimos um prognóstico, uma predição - a hipótese. O método científico consiste, ainda, em submeter, a teoria à prova, tomando seu prognóstico e confrontando-o com observações experimentais. Havendo acordo do resultado da observação com a predição teórica, toma-se a hipótese como corroborada, ou confirmada; o desacordo implicará na refutação ou falsificação da teoria. Nesse processo, nunca se dará uma prova final que modifique o caráter hipotético dos enunciados científicos.


2.


A estrutura de enunciados hipotéticos que formam a ciência é a mesma para os três tipos de respostas que podem ser dadas pela ciência para um problema. Assim, a ciência pode ser tomada como uma "explicação", ou como uma "predição", ou como uma “experimentação".(3)

Se entendermos como nosso problema encontrar quais são as condições iniciais ou leis universais (ou ambas as coisas) das quais poderíamos deduzir um prognóstico específico, estaremos buscando uma "explicação”. Se considerarmos as leis e condições iniciais como dadas e as usarmos meramente para deduzir o prognóstico, a fim de conseguir alguma informação nova, estaremos, então, buscando fazer uma "predição”, ou previsão. E se tomarmos uma das premissas, quer a lei universal quer as condições iniciais, como problemática e o prognóstico como algo que se há de comparar com os resultados dos experimentos, estaremos em busca da "experimentação", ou teste da premissa problemática.

O resultado da "experimentação" é a seleção das hipóteses que conseguiram superar as experiências ou a eliminação das hipóteses que foram comprovadas como errôneas. A "experimentação" é, portanto, o momento crucial para a ciência, uma vez que é a tentativa de expurgar falsas teorias e apontar nelas os pontos fracos. O objetivo do conhecimento científico é descobrir as teorias consistentes, estabelecer a verdade das hipóteses; para tanto, devemos testá-las o mais severamente possível, tentando demonstrá-las como errôneas e procurando identificar os pontos onde são mais frágeis.

A atitude científica não consiste em procurar verificar uma teoria. A verificação, ou comprovação experimental, é relativamente irrelevante para a ciência. O descobrimento de casos que confirmam a teoria acrescenta pouca informação sobre o status científico de uma teoria, salvo quando esses casos resultam de legítimas tentativas de refutá-la. Portanto, a atitude crítica é fundamental no procedimento científico. Se buscarmos confirmações da teoria, nós as encontraremos; poderemos, até mesmo, criar hipóteses especiais aplicáveis apenas aos casos em que as nossas teorias se virem ameaçadas. Desse modo, é relativamente fácil encontrar provas com elementos comprobatórios de uma teoria. Pelo método de seleção por eliminação, só as teorias mais consistentes serão consideradas como científicas. Isso significa que apenas as mais aptas haverão de sobreviver.

Para a ciência, de forma geral, não tem a menor importância a investigação sobre a origem de nossas presunções, idéias ou teorias. Não importa se provêm de generalização indutiva, dedução, intuição, revelação ou que simplesmente tropecemos nelas. Os instrumentos de conhecimento devem ser entendidos no exercício de sua autêntica função; necessitam ser analisados não apenas na acidentalidade de sua relação com a origem das teorias, mas também em sua funcionalidade como instrumentos de teste e contestação. Essa é a razão pela qual nem a observação, nem a razão, são autoridades. A intuição intelectual e a imaginação são muito importantes, porém, não são dignas de confiança. Elas podem mostrar-nos muito claramente as coisas e, contudo, conduzir-nos ao erro. São indispensáveis como fontes principais de nossas teorias; mas a maior parte de nossas teorias é falsa, de todas as maneiras. A função mais importante da observação e do raciocínio e, ainda, da intuição e da imaginação, consiste em contribuir para o exame crítico dessas "conjeturas audazes, que são os meios com os quais sondamos o desconhecido.(4)

Não podemos confundir as questões de genealogia com as questões de validade. O que podemos assegurar é que nosso conhecimento não evolui sem a presença de teorias ou hipóteses. O que importa para a ciência é a forma como a teoria foi testada.

Esse método se aplica, em especial, às ciências sociais, pois a maioria de seus objetos é constituída de seres abstratos, de construções teóricas, de modelos criados para explicar nossas experiências. A elas se aplica, com maior propriedade, o método dedutivo a partir de hipóteses. Pode-se dizer que esse método é até mais apropriado para as ciências sociais do que para as ciências naturais. O cientista natural não pode dispor de observações diretas quando constrói seus estudos sobre o átomo. Contudo, o sociólogo pode utilizar-se dos conhecimentos intuitivos que tem de si mesmo, quando cria hipóteses sobre os fenômenos sociais. O elemento unificador do método empregado, tanto em ciências sociais como em ciências naturais, refere-se à exigência de que todas as hipóteses sejam experimentadas, isto é, colocadas à prova.

Tanto nas ciências sociais como nas naturais, as hipóteses têm o mesmo caráter, isto é, são proposições proibitivas, que sempre procuram excluir certas possibilidades.

Uma das peculiaridades metodológicas das ciências sociais é que os homens e mulheres, como sujeitos da ação social, são seres racionais. E essa racionalidade influi diretamente nas situações sociais. Em conseqüência disso, pode-se supor que existem elementos de racionalidade em todas as situações sociais. Isso não significa que homens e mulheres atuam socialmente sempre de forma racional, utilizando-se de todos os elementos de informação disponíveis para conseguir um fim almejado. Contudo, comportam-se de maneira mais ou menos racional. Isso nos permite construir modelos racionais de conduta e alimentarmos a expectativa de que esses modelos venham a ser seguidos, com algumas alterações, por homens e mulheres. Portanto, é justificável a crença de que as situações sociais concretas são mais simples que as situações concretas estudadas pelas ciências naturais.(5)

Assim, é plausível a teoria de que, sob certos aspectos, o método hipotético-dedutivo é mais facilmente aplicável às ciências sociais do que às ciências naturais. Dessa forma, só nas ciências sociais são possíveis os experimentos de modelos racionais de conduta.


3.


A questão do método em ciências sociais tem a mesma conotação teórico-prática dos estudos que se referem à epistemologia das ciências naturais. A epistemologia é baseada no pressuposto de que são necessários estímulos de caráter prático para o estudo dos métodos de investigação científica. Aparentemente, as ciências naturais peculiarizam-se por seu caráter prático, pois são justamente as experiências práticas que têm guiado o desenvolvimento da ciência aplicada.(6)

A evolução do conhecimento não é produzida pela busca de resposta para as investigações descomprometidas dos intelectuais; nem se produz gerada pela curiosidade intelectual do cientista. São, porém, os desafios práticos, os problemas de solução premente, aqueles que de fato orientam as especulações teóricas e chegam, até mesmo, a determinar seus limites. Se isso se aplica às ciências naturais, deve também constituir a orientação das ciências sociais. Portanto, a investigação sobre problemas metodológicos só se processa com base na existência de embaraços, impasses ou problemas com os métodos então existentes. Não se verificam investigações descomprometidas com problemas de ordem prática. Portanto, a própria investigação sobre os métodos decorre das dificuldades dos métodos de que dispomos.

Assim, a investigação sobre o problema metodológico, nas ciências sociais, deve inspirar-se em problemas práticos com os quais se depara o investigador. Os problemas de ordem prática surgem de impasses produzidos pelos métodos existentes. Desse modo, a investigação sobre o método das ciências sociais torna-se a discussão dos métodos já existentes, na tentativa de descobrir seus enganos, superar suas deficiências, propondo novas soluções.


4.


Segundo Popper, o método mais indicado para conseguir resultados práticos nas ciências sociais consiste em analisar criticamente "propostas parciais" de explicação dos fenômenos sociais. O procedimento metodológico recomendado consiste em tentar desvendar se determinada ação econômica ou política tenderia ou não a produzir os resultados esperados ou desejados. (7) As teorias sociais devem ser interpretadas como "propostas parciais", como tentativas parciais de compreensão dos resultados inesperados de nossas ações intencionais. Esse ponto de vista é identificado por Popper como "tecnologia social fragmentária".(8)

Nas ciências sociais é adotado o ponto de vista tecnológico na escolha dos problemas a serem analisados. Contudo, isso não significa que os problemas teóricos serão excluídos da preocupação do cientista social. O ponto de vista tecnológico será considerado como indicador dos critérios pelos quais serão escolhidos os problemas sociais mais significativos. A orientação tecnológica, além de nos conduzir na seleção dos problemas a serem tratados, exercerá a função de disciplinadora de nossas tendências especulativas.


5.

A "engenharia social fragmentária" é a metodologia que consiste em provocar mudanças sociais por meio de pequenos ajustes e reajustes nas instituições.(9) Nesse sentido, a expressão "engenharia" é tomada em sentido análogo ao da expressão "engenharia de obras", isto é, indica o conjunto de todos os conhecimentos tecnológicos necessários à execução de uma obra (de seu fim), e da disposição desses meios em função do fim

A expressão "Engenharia social fragmentária" indica o conjunto de teorias sobre como reconstruir e manejar as instituições, assim como a maneira de projetar as que deverão ser estabelecidas. O método da "engenharia social fragmentária" decorre da constatação de que apenas uma minoria de instituições sociais é conseqüência consciente de nossas ações, sendo, portanto, projetada previamente. A grande maioria dessas instituições é resultado imprevisível das ações humanas intencionais

Para o método da "engenharia social fragmentária", as instituições sociais são concebidas de forma instrumental ou funcional, isto é, o "engenheiro de ação gradual" ou tecnologista social procurará dispor dessas instituições com o objetivo de alcançar determinados fins. Essas análises parciais ou "composturas parciais" têm um caráter limitado, pois, as instituições dependem das pessoas para seu funcionamento. Assim, não é possível criar instituições inteiramente seguras, ou seja, instituições cujo funcionamento não dependa, grandemente, de pessoas. Em muitas situações, as instituições reduzirão o grau de incerteza ligado ao elemento pessoal, auxiliando aqueles que perseguem os objetivos que a instituição tem em vista e de cuja iniciativa e saber pessoal muito depende o êxito da mesma instituição.(10)

A "engenharia social fragmentária" é baseada na teoria de que nenhum fim social pode ser atingido abrigando-se o ideal de tomar a sociedade como um todo. Só podem ser alcançados os objetivos que impliquem em ajustes e reajustes, sem se caracterizar pela ambição de controlar as "forças históricas que modelam o futuro das sociedades".


O engenheiro fragmentário sabe, como Sócrates, quão pouco sabe. Sabe que só podemos aprender de nossos erros. Portanto, avançará passo a passo, de forma gradual, comparando cuidadosamente os resultados esperados com os resultados obtidos e sempre atento ante as inevitáveis e indesejadas conseqüências de qualquer intervenção na realidade social; e evitará começar reformas de tal complexidade e alcance que o impossibilitem de desemaranhar causas e efeitos, e de saber o que, em realidade, está fazendo.(11)

Dessa forma, a "engenharia social fragmentária" é a orientação que nos permite compreender e controlar a imprevisibilidade do fator humano dentro das sociedades. As instituições sociais se alteram e sofrem a influência direta dos impulsos humanos, que fazem com que elas se desenvolvam em direções imprevisíveis. A posição de Popper implica que esse é o único caminho para tratar a sociedade sem a necessidade de violentá-la, impondo-lhe uma planificação ou um sentido que não lhe, pertencem.


6.


Do acima exposto, pode-se concluir que as ciências sociais se referem a aspectos selecionados da vida social. A totalidade das propriedades ou aspectos de uma coisa e, especialmente, todas as relações que suas partes componentes mantêm entre si não podem ser objeto de conhecimento científico.

De fato, é impossível observar e descrever todos os aspectos do mundo inteiro ou mesmo de um de seus objetos. Pois, ao tomá-lo como separado do todo, portanto, isoladamente, estamos tomando-o como um todo e, desfazendo-o das relações que o mantêm como parte do todo de onde é extraído. Toda descrição é, necessariamente, seletiva. Se quisermos estudar uma coisa, somos obrigados a selecionar certos aspectos dela, somos conduzidos a escolher certas propriedades ou determinados aspectos especiais do objeto, e assim passamos a tomá-lo como uma estrutura organizada. Um objeto de estudo científico não pode ser um todo, no sentido de "totalidade".

Nesse sentido, o objeto de estudo das ciências sociais não são os "todos sociais". As totalidades sociais, entendidas como a estrutura de todos os acontecimentos sociais, são demasiadamente complexas para poderem ser abarcadas em uma única análise. Portanto, seria logicamente impossível tratá-las por meio do conhecimento científico. Assim, não se conhece um só exemplo de descrição científica de uma situação social concreta, em sua totalidade. O que somos capazes de produzir são análises parciais, "propostas parciais" ("composturas parciais"), que procuram destacar um aspecto selecionado de um determinado contexto.(12)O que se quer dizer é que os experimentos sociais em grande escala, isto é, abrangentes de totalidades sociais, são extremamente inadequados. Isso pelas razões que analisamos a seguir.

Os experimentos de "todos sociais" desconhecem as experiências fragmentárias, pois, os experimentos de "todos sociais" passam, superficialmente, sobre as experiências fragmentárias, que são fundamentais para todo conhecimento social, tanto científico como pré-científico. Os supostos experimentos sociais abrangentes de totalidades sociais não levam em consideração o fato de que aprendemos muito sobre a vida social com base na análise de pequenos experimentos. Há uma série de experimentos fragmentários realizados, no mais das vezes, em escala pré-científica, com objetivos nitidamente práticos, mas que denotam um conhecimento tecnológico dos acontecimentos sociais. São conhecimentos adquiridos por um método pré-científico, uma vez que carecem de atividade sistemática, orientados apenas pela necessidade de superar alguma dificuldade prática.(13)

Assim, existe uma notável diferença entre o homem de negócios, o general, o professor experiente e aquele que não possui experiência. Essa diferença é, no mais das vezes, decorrente de experiências especiais vividas pelos indivíduos e da reflexão crítica sobre os resultados desses experimentos.

Existe, portanto, um conhecimento adquirido não só por meio da experiência vivida, mas, também, por meio da reflexão e da observação. Assim, a atitude de um vendedor que raciona seus produtos, para conseguir melhores preços com o aumento da demanda do mercado, tem esse conhecimento adquirido de experiência e observação. Faz-se necessária, também, a reflexão, para que ele retire conhecimentos da observação, do acontecer espontâneo dos fatos e aplique-os nas experiências subseqüentes. E, em alguns casos, nada impede que esses conhecimentos sejam adquiridos da forma sistemática e crítica que caracteriza a metodologia científica. Assim, é quase imperceptível a passagem do procedimento pré-científico para o científico.

Essas idéias teriam levado Popper a afirmar: “Segundo esta opinião fragmentária, não existe uma divisão claramente delineada entre a atitude pré-científica e a experimental científica, ainda que a aplicação, cada vez mais consciente, de métodos científicos, quer dizer, críticos, seja de grande importância. De ambas as atitudes, pode-se dizer que empregam fundamentalmente o mesmo método de ensaio e erro. Ensaiamos, isto é, não só registramos uma observação, tentamos ativamente resolver alguns problemas mais ou menos práticos e definidos. E progredimos unicamente se estivermos preparados para aprender de nossos enganos, reconhecer nossos erros e os utilizarmos criticamente, em vez de perseverar dogmaticamente neles. Ainda que essa análise possa parecer trivial, descreve, creio eu, os métodos de todas as ciências empíricas. São justamente os problemas de ordem prática que nos levam a ensaiar hipóteses, teorias, e submetê-las à experimentação. As questões práticas que surgem é que nos induzem à elaboração de ensaios provisórios, que devem ser criticados a fim de identificarmos sua falsidade e assim percebermos os erros que sempre cometemos. Todas as teorias são ensaios, hipóteses provisórias, lançadas para verificarmos se são válidas e nossa atitude diante delas é de crítica, com a intenção de desvendar seu erro”.(14)

A passagem do conhecimento pré-científíco para o conhecimento científico estaria na atitude crítica que caracteriza este último. A atitude crítica realiza-se na busca para detectar conscientemente o erro e eliminá-lo.

Portanto, pode-se concluir que toda experiência de totalidades sociais desconsidera o caráter fragmentário das individualidades que a compõem. Para abranger a totalidade, ela é obrigada a simplificar os problemas, eliminando as diferenças individuais. Destruindo a diversidade de mentes, aniquilando a possibilidade da livre expressão do pensamento, especialmente do pensamento crítico. Dessa forma, as experiências de totalidades sociais impossibilitam o próprio conhecimento científico, pois, como atitude metodológica, implicam na supressão da liberdade de crítica.

Os experimentos de "todos sociais" não significam avanço do conhecimento, pois, as experiências de totalidades sociais, na medida em que são possíveis, não contribuem muito para a soma de nossos conhecimentos experimentais. Só podemos falar em experiência de totalidades sociais se considerarmos a experiência no sentido de "ação cujo resultado é incerto" e não no sentido de "uma forma de adquirir conhecimento por meio da comparação dos resultados obtidos com os resultados esperados".(15)

Essa posição contém uma crítica explícita a certas teorias do método em ciências sociais que concebem a realidade social como dotada de existência própria, independente da existência dos indivíduos que a compõem. Como exemplo de tal concepção, pode-se citar a proposta de E. Durkheim. Ele diz:”Ora, o grupo está constituído de maneira diferente do indivíduo, e as coisas que o afetam são de outra natureza. Representações que não exprimem nem os mesmos sujeitos nem os mesmos objetos não poderiam depender das mesmas causas. Para compreender a maneira pela qual a sociedade vê a si mesma e ao mundo que a rodeia, é preciso considerar a natureza da sociedade e não a dos indivíduos”.(16)

Em outra passagem, E. Durkheim afirma de forma categórica:”Se a síntese sui generis que constitui toda sociedade desenvolve fenômenos novos, diferentes daqueles que se passam nas consciências solitárias (ponto cuja admissão já alcançamos), concorde-se também que a sede de tais fatos específicos é a própria sociedade que os conduz, e não as partes desta, isto é, seus membros. Tais fatos são, pois, nesse sentido, exteriores às suas consciências individuais consideradas como tais, do mesmo modo que os caracteres distintivos da vida são exteriores às substâncias minerais que compõem o ser vivo. Não é possível reduzi-los a seus elementos sem entrar em contradição, uma vez que, por definição, neles está pressuposto algo mais do que os elementos que contêm.(17)

E. Durkbeim parte de uma dissociação fundamental entre o indivíduo e a sociedade. Os fatos sociais não são coisas materiais, mas “constituem coisas tais como as coisas materiais, embora de maneira diferente", conforme afirma em As regras do método sociológico, pp.XX e XXI. Os fatos sociais não são, pois, coisas; não devem ser classificados em determinada categoria do real, mas necessitam ser tratados por certa atitude mental. Suas propriedades características não podem ser descobertas pela mais atenta das introspecções. Para compreendê-los, o indivíduo deve aceitar a condição de sair de si mesmo, por meio da observação e experimentação. O fato social é, portanto, exterior ao indivíduo. E. Durkheim, procurando expressar de modo claro sua posição, declara que é fato social toda maneira de agir, fixa ou não, suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior; ou então, ainda, é geral na extensão de uma sociedade dada, apresentando existência própria, independente das manifestações individuais que possa ter.(18)

O fato é que, as experiências de totalidades sociais nos impedem de identificar quais os resultados de uma certa medida, ou de uma intervenção determinada. Dessa maneira, se somos capazes de atribuir um determinado resultado a uma determinada medida, somente podemos fazê-lo se possuirmos um conhecimento teórico adquirido anteriormente e não proveniente do experimento de totalidades sociais em questão.

E. Nagel, embora utilizando-se de diferente argumento, parece concordar, neste ponto, com a análise aqui desenvolvida. Ele afirma que normalmente nos utilizamos de duas classes de termos, sempre que, na investigação social, buscamos descrever os seres humanos e suas condutas. Assim, temos os termos que se referem aos seres humanos individuais e ainda os termos designativos de grupos de seres humanos e atributos característicos de tais grupos ou formas de organização ou, ainda, das atividades manifestas por esses grupos. Contudo, a utilização dos termos coletivos ainda se constitui num ponto de discórdia entre os cientistas sociais. Isso seria particularmente válido quando se interrogam sobre questões referentes ao que designam, se é que designam algo, quando investigam sobre se os termos coletivos são definíveis mediante termos individuais. Dessa forma, o emprego de termos coletivos ou definidores de totalidades, na análise social, é assunto polêmico.(19)

No caso dos experimentos de "todos sociais", entretanto, estamos impossibilitados de identificar exatamente quais os resultados de uma medida específica. O máximo que podemos fazer é atribuir "a totalidade dos resultados" à "totalidade das medidas".

Ademais, o método fragmentário é um instrumento muito mais eficiente. Pode ser usado com ampla facilidade para identificação e combate dos maiores e mais urgentes males de nossa sociedade. Permite-nos uma luta definida contra formas concretas de injustiça e exploração. Pelo método das "propostas parciais" podemos, por exemplo, identificar a fome e a miséria como males a serem sanados. Esse método não nos dispersa num universo de modelos ideais e distantes voltados para o "bem último" ou para a "sociedade perfeita". Por meio dele, o fracasso e o erro são mais facilmente identificados.

Popper argumenta que, da mesma forma que a infra-estrutura composta pelas máquinas de uma empresa pode ser entendida como resultado de pequenos arranjos e correções nos diferentes aspectos do processo mecânico de produção, também o planejamento do processo produtivo é o resultado de intervenções setoriais e intermitentes. Assim: “Pode-se admitir que as máquinas físicas possam ser planejadas com êxito mediante modelos e planos detalhados e, com elas, uma fábrica inteira para sua produção etc. Porém, tudo isso é possível só porque muitos experimentos fragmentários foram levados a cabo de antemão. Cada máquina é o resultado de muitas pequenas melhoras. Cada modelo tem de ser "desenvolvido" pelo método de ensaio e erro, por incontáveis pequenos reajustes. O mesmo vale para a planificação de uma fábrica. Esse plano, aparentemente holístico, só pode ter êxito porque já cometemos toda sorte de pequenos enganos; de outra forma seria de esperar que tal espécie de planejamento levasse a erros sérios”.(20)

Uma vez estabelecida a proposta de que não se dão experimentos de totalidades sociais, surge a questão de como aplicar o método experimental nas ciências sociais. A interpretação aqui exposta implica na idéia de que é impossível a reprodução de experiências sociais exatamente equivalentes. Ao procedermos a um experimento social de dois fenômenos, ainda que se possa descrever as condições de semelhança, há uma série de fatores cuja ação sobre os experimentos não podemos descrever com exatidão e, conseqüentemente, nada podemos dizer de sua importância na reprodução da experiência. Só existe uma forma de detectarmos logicamente a existência de condições semelhantes entre os experimentos sociais. Esta forma é a experimentação. Só fazendo as experiências podemos constatar se duas experiências são equivalentes.

E' impossível identificar, a priori, a importância e a influência de determinados fatores sobre a experimentação. Assim, a variabilidade das condições sociais, conseqüência inevitável do fator temporal, influencia fatalmente as experiências sociais. Porém, isso não torna inviáveis as experiências sociais. Só a experiência pode nos assegurar qual a influência que a mudança (variação) das condições sociais exerce sobre a experiência. A própria afirmação de que a variação das condições sociais influencia fatalmente as experiências sociais é uma proposição sujeita à experiência.

Em diferentes (variáveis) condições sociais, poderemos obter diferentes experiências sociais. Isso, contudo, não destrói o caráter científico das experiências sociais. Esse caráter depende da forma como se concebe a ciência. Se entendermos a ciência como teorias e presunções que se criticam, e sustentarmos que o conhecimento científico caminha pelo método do ensaio e erro, podemos assegurar que a discrepância entre o resultado esperado e o resultado obtido não invalida a possibilidade da experimentação. Isso porque, no mais das vezes, fazemos as previsões dos resultados baseando-nos apenas em nossas experiências mentais.

É pelo poder imaginativo que podemos criar nossos ensaios. A falsificação de nossas teorias aprimora nossa habilidade de interpretar as condições sociais. Assim, é possível resguardar a validade científica das proposições da ciência social. Para isso, contudo, devemos adotar uma determinada noção de ciência. Um grande número de experimentos sociológicos muito desejáveis permanecerão um sonho durante muito tempo, apesar de não serem de caráter utópico, mas fragmentário. Na prática, o sociólogo tem de confiar, muitas vezes, em experimentos levados a cabo mentalmente e em uma análise de medidas políticas levadas a cabo sob condições e maneiras que deixam muito a desejar do ponto de vista científico.(21) Entretanto, essas teorias também se aplicam ao papel da experiência nas ciências naturais. Também nestas, a experiência e a observação não são os elementos que fornecem validade ou determinam a certeza do conhecimento científico. Elas são instrumentos indispensáveis na busca do controle das especulações teóricas, do estímulo à busca de uma hipótese resistente aos testes experimentais, e da prova das teorias, para detectar os nossos erros.


7.


O fato de que os fenômenos sociológicos parecem estar condicionados aos períodos históricos constitui um problema para a construção de leis sociológicas.
Somos inclinados, naturalmente, a considerar como leis, válidas para todas as sociedades, as regularidades, a constância de costumes, que observamos nas sociedades em que vivemos. Contudo, desconsideramos que, no mais das vezes, essas são características aplicáveis apenas a nossa sociedade e a nosso dimensionamento temporal. Assim, podemos incorrer no erro de estender as experiências sociais passadas, com todas as suas implicações, aos experimentos futuros, de cuja existência nada mais sabemos que sua mera possibilidade. Em decorrência disso, podemos transformar em leis, supostamente universais, os resultados de experiências que realizamos em nosso tempo.

Contudo, esse aspecto do problema, cujas implicações teriam sido postas de forma exagerada pelos historicistas, não é insolúvel. É fato que não podemos escapar do dimensionamento temporal dos acontecimentos sociais. Entretanto, do ponto de vista lógico, há um expediente de grande validade na resolução dessa questão: a capacidade inventiva do cientista, a invenção científica.

Além do mais, tal dificuldade não é peculiar das ciências sociais, é também aplicável às ciências naturais. Porém, nem por isso podemos afirmar que o dimensionamento temporal se constitui em fator impeditivo das ciências naturais. O fato é que não existem empecilhos lógicos para a elaboração de leis sociológicas que sejam aplicáveis a diferentes períodos. Se é certo que existem dificuldades para conseguir superar o dimensionamento temporal dos fatos sociais, isso é igualmente válido para as ciências naturais.

Nas ciências naturais é que encontramos os exemplos mais notáveis da capacidade inventiva do cientista. Por exemplo, os estudos de Newton sobre os corpos livres da influência da gravidade.(22)

Ademais, se o condicionamento temporal é responsável por alguma conseqüência epistemológica nas ciências sociais, o mesmo se passa nas ciências naturais. As leis científicas conservam a mesma natureza tanto em umas como em outras. É impossível assegurar a validade universal de nossas formulações científicas. Ainda que devamos tomá-las como presuntivamente válidas de forma universal. O método científico resulta na identificação de leis ou proposições com as quais pretendemos estabelecer as regras que controlam os eventos naturais de forma necessária. Se admitíssemos leis que estivessem sujeitas à mudança, nunca poderíamos explicar a mudança com leis. Equivaleria à admissão de que toda mudança é simplesmente milagrosa. E seria o fim do progresso científico, porque, se se chegassem a fazer observações inesperadas, não haveria necessidade de rever nossas teorias: a hipótese ad hoc de que as leis mudaram "explicaria tudo”.(23)


8.


Certamente, que existem algumas restrições a certas áreas das ciências sociais. Assim, embora as leis das ciências naturais, como as das ciências sociais sejam, em sua natureza, hipóteses, nem todas as hipóteses podem ser apresentadas como leis. As hipóteses históricas e uma série de hipóteses sobre o processo social global são proposições particulares, e não universais, sobre um acontecimento individual ou sobre uma série determinada de acontecimentos. Por exemplo, a hipótese evolucionista de Darwin.(24)

A sociedade humana existe no tempo, isto é, dentro do processo histórico. Contudo, a descrição desse processo não é uma lei universal, e só pode ser expressa numa proposição particular, singular. As leis são proposições que se referem a todos os processos de uma classe determinada. Ora, o processo histórico de evolução da sociedade é único. Disso se pode concluir que não existem leis do processo de evolução da história nem leis da história.

Não podemos elaborar uma lei aceitável pela ciência se sempre nos encontramos na observação de um só e único caso. É certo que, com base em uma só experiência, podemos propor uma hipótese e chegar à formulação de uma lei universal. Porém, até que essa nova proposta seja experimentada em novos casos, não podemos tomá-la como uma contribuição séria para o conhecimento científico.(25)

Essa posição poderia ser contraposta à teoria de que o processo histórico não é único. Por meio da doutrina da periodicidade de ciclos históricos poder-se-ia viabilizar a comprovação experimental das hipóteses e das leis sociais universais referentes ao processo histórico. Essa posição teria, entretanto, de responder à alegação de que não se dá a repetição de momentos históricos. Cada fato social acontece em circunstâncias diversas, e cada caso sofre a influência de sua localização no próprio processo de repetição, isto é, ele seria influenciado pelas repetições anteriores e certamente influenciaria as repetições posteriores. Além do mais, a teoria da periodicidade dos cicios históricos se constrói de tal forma que se torna impossível testá-la. Os fatos seriam selecionados conforme os critérios da própria teoria que deveriam colocar em prova. Esta teoria somente pode ser comprovada pelos fatos e nunca falseada por eles. Seria uma daquelas teorias sem falseadores potenciais. E, portanto, não-científica.

Um outro argumento que poderia ser contraposto à essa posição sugere que podemos discernir e extrapolar a tendência ou a direção de um movimento revolucionário do todo social.(26)Esse argumento se fundamenta na teoria de que os objetos das ciências naturais e sociais são análogos. E como nas ciências naturais as predições são componentes lógicos de seus sistemas, acredita-se que tal também se aplique às ciências sociais.

Esse argumento, entretanto, é falso, pois a analogia dos objetos das diferentes ciências não é tão extensa quanto o argumento implica. As ciências naturais partem de sistemas estacionários e fazem predições dinâmicas a longo prazo. É o caráter estacionário do sistema que permite ao cientista natural fazer predições futuras. E pelas razões anteriormente consideradas, o mesmo não pode ocorrer nas ciências sociais.

As ciências sociais consideram sistemas que não são estacionários nem repetitivos. Isso é particularmente válido se considerarmos que é justamente nos sistemas não-repetitivos que importaria prever o movimento evolucionário. O máximo que se pode conseguir é dimensionar conjuntos de aspectos selecionados. Não podemos, portanto, captar a evolução de aspectos multidimensionais da sociedade. São considerações como essas que teriam levado Popper a afirmar:
“A esperança, em especial aquela de que, um dia, possamos encontrar "leis do movimento da sociedade", da mesma forma como Newton encontrou as leis do movimento dos corpos físicos, não é mais do que o resultado desses mal-entendidos. Visto que não existe, numa sociedade, movimento em sentido semelhante ou análogo ao do movimento dos corpos físicos, não podem existir tais leis.”(27)

É possível concluir que é válido supor a existência de tendências relativas ao processo de desenvolvimento histórico das sociedades. Mas as tendências não são leis. Uma proposição que afirme a existência de alguma tendência é existencial e não universal. Ela estaria propondo a existência de uma tendência em determinado espaço e tempo, seria, portanto, uma proposição histórica singular. Além do mais, estaria simplesmente afirmando um fato e não proibindo um evento, como é a exigência lógica de uma lei universal. Com base em leis universais, podemos fazer predições de acontecimentos. Contudo, ao considerar tendências, não podemos prever acontecimentos particulares. De igual forma, de uma tendência não podemos concluir por uma lei. De qualquer sucessão de acontecimentos tomados da natureza, de qualquer seqüência de fatos concretos, não se pode encontrar a conexão causal entre eles, expressa em uma única lei da natureza. Se dois ou mais fatos estão relacionados entre si por uma conexão causal, essa relação não pode ser descrita por uma só lei nem mesmo por um único grupo de leis com características especiais para tal caso. A ação dos fatores que determinam tal conexão é inexprimível em sua totalidade lógica. Da mesma forma, como não são as tendências que validam as leis, não existem leis que determinem o caráter dinâmico das tendências.


9.


Todas essas considerações implicam a idéia que há distinção entre leis e tendências. Um acontecimento específico só é explicado na sua relação causal se de sua explicação for possível deduzir uma proposição que descreva esse acontecimento. Essa proposição teria de ser inferida das seguintes premissas: de um lado, algumas leis universais e, de outro, algumas proposições particulares que descrevam as condições iniciais específicas relativas ao caso em questão.

Seria um exemplo de explicação científica a seguinte afirmação: para cada fio de uma mesma estrutura dada, determinada pelo material de que é feito, por sua espessura etc., existe um peso característico P, tal que o fio se partirá se um peso maior que P for suspenso nele. Se, num fio de estrutura E1, o peso característico P é igual a 1kg, e um peso P2, igual a 2kg, for dependurado nele, o fio se romperá.(28)

A estrutura dessa explicação é composta de proposições singulares, que descrevem as condições iniciais específicas: "este fio tem uma estrutura E1" e "o peso suspenso no fio foi um peso de 2Kg”. Isto posto, podemos deduzir, das leis universais e com a ajuda das proposições que descreviam as condições iniciais específicas, a seguinte proposição: “o fio se romperá”. Essa é a conclusão, é o efeito, o prognóstico, ou a previsão científica.(29)

C. Hempel apresenta uma visão semelhante, porém mais detalhada da estrutura das explicações científicas. Ele diz: “Caso as leis relevantes sejam explicitamente formuladas, a explicação resultante pode ser apresentada sob forma de um argumento dedutivo, no qual a ocorrência do evento em questão é inferida a partir de um conjunto de premissas que especifica (i) as leis relevantes e (ii) as circunstâncias antecedentes particulares que se diz, em termos comuns, terem sido a causa do acontecimento. Nossa explicação da dilatação do fio de cobre, por exemplo, assumiria a forma de um argumento com duas premissas: (i) a lei geral segundo a qual todo fio de cobre toma-se mais longo quando sua temperatura se eleva e (ii) o enunciado de que dado fio era feito de cobre e de que sua temperatura sofreu elevação. Dessas premissas decorre, dedutivamente, a conclusão de que o fio se estendeu em comprimento, que é o fato a ser explicado. Assim, o enunciado explicativo de que a dilatação do fio foi causada pela elevação da temperatura é substituído por um argumento no qual já não aparece a palavra "causa" ou seus cognatos. Nesse argumento se diz, resumidamente, que dado fio de cobre foi aquecido e que todos os fios de cobre, quando aquecidos, dilatam-se; e que, portanto, o dado fio de cobre dilatou-se.(30)

Essas exigências têm de ser satisfeitas para que se tenha uma explicação científica. Do que se conclui que não se dão causas ou efeitos de modo absoluto. O ato de predizer um acontecimento é apenas decorrente da aplicação das leis científicas nas condições preestabelecidas. Nessa formulação, estaríamos usando o conhecimento científico para explicar um acontecimento particular.

Contudo, a explicação causal de regularidades descritas por uma lei universal implica em novas exigências. A explicação causal de uma regularidade consiste em deduzir uma lei (que contém as condições sob as quais tem validade a regularidade proposta) de um grupo de leis mais gerais, que tenham sido experimentadas e confirmadas independentemente.(31)

As regularidades podem adquirir consistência lógica de "quase leis dinâmicas" e, inclusive, serem utilizadas como base para predições. Mas não se deve esquecer que isso só será possível, isto é a sua validade depende da persistência de certas condições iniciais. Não possuindo, portanto, a mesma natureza das leis, cuja característica é a universalidade incondicional.


10.


Nas interpretações da realidade social que construímos não se dão tendências ou regularidades logicamente absolutas. Disto se pode concluir que não se justificam previsões incondicionais. Se elas existissem, teriam o caráter de profecias. Porém, as predições científicas são sempre condicionais, visto que são vinculadas às condições iniciais específicas. Toda classe de tendências está vinculada a um conjunto de condições específicas. Se fosse possível descrever o conjunto de condições específicas de todas as tendências, então, seria possível prever tendências. Ora, isso é impossível.

Chegamos, portanto, à conclusão de que as tendências são condicionais. É difícil a tarefa de determinar as condições em função das quais as tendências persistem. Talvez seja mais fácil descobrir as condições sob as quais elas não sobrevivem. De fato, existem incontáveis possíveis condições e, para poder examinar todas as possibilidades em nossa busca da verdadeira condição de uma tendência, devemos tentar imaginar, a cada momento, as condições sob as quais a tendência em questão desapareceria.(32)

Portanto, toda análise em ciências sociais parte de problemas e se desenvolve com base na experimentação de possíveis soluções para estes e para os demais problemas que, porventura, apareçam no decorrer da investigação. É por meio de tentativas experimentais para resolver nossos problemas, por meio de conjecturas controladas pela mais severa crítica, que se desenrola o desenvolvimento das ciências sociais.(33)


Conclusão


A teoria do método das ciências sociais, aqui proposta, é fundamentada no "individualismo metodológico", isto é, ela se baseia na teoria de que os comportamentos e as ações das coletividades são expressão do comportamento e das ações individuais.(34)

Outro fundamento dessa posição é a teoria de que homens e mulheres são condicionados pelo meio social. Contudo, também os fenômenos sociais são resultado de ações e decisões humanas. Ainda que, nem sempre, eles sejam os resultados de ações humanas conscientes e intencionais. Freqüentemente, as ações humanas produzem conseqüências involuntárias e indesejáveis.(35)

A tarefa das ciências sociais consiste em tentar identificar e analisar as conseqüências das ações humanas dentro do quadro das instituições e tradições sociais. Consiste em procurar descrever as repercussões involuntárias das ações humanas intencionais.

Para a compreensão das conseqüências das ações humanas, devemos recorrer às situações em que estas ocorrem. É necessário, portanto, que procuremos penetrar na "lógica da situação". Os fenômenos sociais são sempre o resultado das decisões, ações e atitudes dos seres humanos. É possível a compreensão objetiva de um fato social. A isto Popper chama de "lógica da situação": a ação se faz compreender em seu contexto de situação social. Para tanto, é necessário destituir a ação de todo seu significado individualista ou psicológico, isto é, todos os aspectos que constituem a explicação do fato devem ser convertidos em elementos da situação.(36)

A "lógica da situação" constitui-se de explicações racionais e teóricas dos fatos sociais. A "lógica da situação" é formada por "composturas parciais", que se caracterizam por ser teorias-tentativas, altamente criticáveis e sujeitas a palpáveis melhorias. Esse é o método das ciências sociais, que nos permite compreendê-las dentro dos moldes críticos da ciência contemporânea.


Notas e referências


1. Popper afirma: "Não pretendo afirmar que inexistam diferenças entre os métodos das ciências teóricas relativas à natureza e à sociedade; essas diferenças são claras e se manifestam até mesmo entre as diferentes ciências naturais, bem como entre as diferentes ciências sociais. (Comparemos, por exemplo, a análise de mercados competitivos e de línguas românticas.) Concordo, porém, com Mill e Comte - e com muitos outros autores, entre os quais C. Menger - em que os métodos usados nos dois campos são fundamentalmente o mesmo (embora deva divergir desses autores quanto àquilo que deva ser considerado método). Os métodos consistem sempre em oferecer explicações causais dedutivas e em submetê-las a testes (por meio de previsões)". POPPER, KARL R. A miséria do historicismo. São Paulo, Cultrix/Edusp, 1980, p. 102.

2. Idem, ibidem.

3. Idem, ibidem, p. 104.

4. Idem, Conjecturas e refutações: O desenvolvimento do conhecimento científico. Brasília,Unb, 1983, p. 56.

5. Idem, A miséria do historicismo. São Paulo, Cultrix/Edusp, 1980, p. 1 1 0.

6. Carl G. Hempel apresenta uma análise bastante interessante dos fatores teóricos e práticos que influem na investigação científica. Ele diz: "Entre os muitos fatores que estimularam e sustentaram a investigação científica ao longo de sua longa história, figuram duas preocupações permanentes, que se constituíram nos motivos mais importantes para que o homem se desse a esforços no campo da ciência. Um deles é de caráter prático: o Homem procura, constantemente, melhorar a posição estratégica em que se situa diante do mundo onde vive e, para tanto, busca encontrar meios eficazes de prever o curso dos acontecimentos que têm lugar a sua volta e, sempre que possível, tenta controlá-los para disso tirar proveito. Quão bem sucedida houver sido a pesquisa na perseguição desse objetivo é evidenciado pelo campo vasto e continuamente crescente das aplicações tecnológicas, tanto construtivas como destrutivas, que imprimiram seu selo característico em todos os aspectos da civilização contemporânea". E, ao dar destaque aos fatores teóricos, continua: "A segunda motivação básica para a investigação científica em que o homem se empenha não envolve preocupações de ordem prática: reside, simplesmente, em sua curiosidade intelectual, em seu desejo profundo e persistente de chegar a conhecer e compreender o mundo que habita. Tão forte é essa necessidade de conhecimento e compreensão que, na ausência de informação fatual adequada, mitos são freqüentemente invocados para responder perguntas acerca do quê e do porquê dos fenômenos empíricos" (HEMPEL, CARL G. "Explicação científica", in SIDNEY MORGENBESSER (org.) Filosofia da ciência. São Paulo, Cultrix/Edusp, 1975, p. 159).

7. POPPER, KARL R. A miséria do historicismo. São Paulo, Cultrix/Edusp, 1980, p. 47.

8. Popper afirma: "Assim como o propósito da engenharia comum é o de projetar máquinas, aperfeiçoá-las e mantê-las, a tarefa da engenharia social de ação gradual é a de projetar instituições sociais, reconstruí-las e fazer as já existentes operarem. A expressão "instituição social" é aqui utilizada em sentido muito amplo, incluindo entidades de caráter público e privado. Valer-me-ei dessa expressão para aludir seja a uma pequena loja, seja a uma grande empresa de seguros, a uma escola, a um 'sistema educacional', à organização policial, a um tribunal ou a uma igreja. Um tecnologista ou engenheiro que acolha o método da ação gradual reconhecerá que apenas algumas instituições sociais brotam por força de um planejamento consciente, enquanto a grande maioria delas tão somente surge como conseqüência imprevista de ações humanas" (POPPER, KARL R. A miséria do historicismo. São Paulo, Itatiaia/Edusp, 1980, p. 52).

9. Idem, ibidem, p. 53.

10. Idem, ibidem., p. 53.

11. Idem, ibidem, pp. 53-54

12. Idem, ibidem, pp. 66 ss.

13. Idem, ibidem, p. 68.

14. Idem, ibidem, p. 69.

15. Idem, ibidem, pp. 70 ss.

16. DURKHEIM, ÉMILE. As regras do método sociológico. São Paulo, Nacional, 1977, p. 26.

17. Idem, ibidem, p. 25.

18. Idem, ibidem, p. 11.

19. NAGEL, ERNEST. La estructura de la ciencia. Buenos Aires, Paidás, 1968, p. 481.

20. POPPER, KARL R. A miséria do historicismo. São Paulo, Cultrix/Edusp, 1980, pp. 72-73.

21. Idem, ibidem, p. 2.

22. Idem, ibidem, pp. 77-78.

23. Idem, ibidem, P. 80-81.

24. Idem, ibidem, p. 83.

25. Idem, ibidem, p. 85.

26. NAGEL, ERNEST. op. cit., p. 543.

27. POPPER, KARL R. A miséria do historicismo. São Paulo, Cultrix/EdusP, 1980, PP. 89-90-

28. Idem, ibidem, pp. 95-96.

29. Idem, A lógica da pesquisa científica. São Paulo, Cultrix/Edusp, 1975, pp. 62-63.

30. HEMPEL, CARL G. op. cit., pp. 160-161.

31. POPPER, KARL R. A miséria do historicismo. São Paulo, Cultrix/Edusp, 1980, p. 98.

32. Idem, ibidem, p.101.

33. Idem, A lógica das ciências sociais. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1978, p. 16.

34. Idem, A sociedade aberta e seus inimigos. Vol. 11. São Paulo, Itatiaia/Edusp, 1974, p. 99.

35. Idem, ibidem, p. 101.

36. Idem, A lógica das ciências sociais. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1978, p. 32.

CAPÍTULO 8 - Ciência e Progresso Científico

CIÊNCIA E PROGRESSO CIENTÍFICO


“Pense no cientista como um explorador de labirintos. Ele se meteu pela ala à esquerda, terminou num beco sem saída, voltou e colocou na entrada um sinal vermelho. Esse sinal é digno de confiança, final, decisivo. Ele prossegue, encontra caminhos abertos, volta, coloca um sinal verde. Esse sinal não é digno de confiança. Nada garante que, mais adiante, a ala por ele explorada não termine também num beco sem saída. O sinal vermelho diz: é inútil entrar por este caminho. Tal sinal tem um enorme valor: poupar esforços. A informação de que certos caminhos não levam a lugar algum é informação tão importante como quaisquer outras. Se você encontra, no início da rua, uma tabuleta com a informação "beco sem saída", você não entra por ela. Economizará. Isso também é conhecimento”.(Rubem Alves. Filosofia da ciência. São Paulo, Brasiliense, 1981,p.179)


Introdução


Uma das conclusões do debate sobre o desenvolvimento da ciência é que o progresso científico não se constrói, como comumente somos tentados a entender, por meio de acumulação de observações nem por meio de saltos revolucionários resultantes da luta de opostos. O que ocorre é a substituição de teorias menos satisfatórias por outras mais satisfatórias, isto é, substituímos teorias em função de seu conteúdo informativo e de sua resistência aos testes. Há um autêntico processo de competição entre as teorias, uma luta pela sobrevivência. É nesse ponto que se inicia a estreita analogia entre a teoria da evolução e o processo de evolução das teorias.(1)

Popper argumenta que a teoria do conhecimento científico não pode ser dissociada de uma teoria evolucionista; é impossível a compreensão de certas questões epistemológicas, sem evidenciar sua relação com a teoria da evolução. Neste capítulo, o argumento de Popper será reconstruído em três partes. Num primeiro momento, procuraremos identificar os princípios básicos e algumas dificuldades filosóficas da teoria da evolução. Num segundo instante, efetuaremos a análise de alguns aspectos da teoria popperiana do conhecimento científico. Final- mente, abordaremos o problema da relação existente entre a teoria da evolução e a teoria do conhecimento científico.


1.



A posição de Popper implica que a teoria da evolução, no sentido que lhe é atribuído por suas versões mais modernas e que, a seguir, procuraremos descrever, pode ser entendida como "lógica situacional". Assim, tem mais o sentido de um "programa de pesquisa" e menos o de uma teoria científica. A teoria de que a vida evolui por tentativa e eliminação do erro é uma proposta mais lógica do que propriamente biológica. O mundo, entendido como um sistema de referência cuja constância é limitada, composto de entidades cuja variabilidade é restrita, é o campo onde se desenvolve a proposta de que sobrevivem algumas entidades resultantes da variação, que se adaptam às condições do sistema de referência. Outras entidades, antagônicas ao sistema, deverão perecer.

Contudo, a seleção darwinista pode ser aplicada mesmo num sistema onde a vida não exista. Nesse sentido, é interessante a análise de Jacques Monod, quando afirma: “O resultante de quanto se disse é constituir um erro conceitual a afirmativa de que a evolução é uma lei, ou mesmo de que a evolução é uma lei aplicável a seres vivos. Isso é errôneo. O privilégio dos seres vivos não é o de evoluir, mas, ao contrário, o de conservar. (Sinto dizer isso, especialmente diante de um grande número de estudantes, mas este é o caso.) O privilégio dos seres vivos é o de possuir uma estrutura e um mecanismo que lhes asseguram duas coisas: (i) reprodução fiel ao tipo da própria natureza e (ii) reprodução, igualmente fiel ao tipo, de qualquer acidente ocorrido na estrutura. Se temos isso, temos evolução, pois temos conservação de acidente. Os acidentes podem ser recombinados e expostos à seleção natural, para verificar se têm ou não significado. A evolução não é uma lei; é um fenômeno que ocorre quando temos estruturas desse gênero”. (2)

Ao acrescentarmos ao mundo caracterizado acima a idéia da vida, isto é, a idéia de corpos capazes de se auto-reproduzirem, então a idéia da tentativa e eliminação do erro se torna uma necessidade lógica para a perfeita compreensão do sistema. Há, ainda, uma outra variável complicadora, que pode ser introduzida nesse mundo que estamos imaginando. Suponhamos que nesse mundo exista a linguagem, a possibilidade de comunicação, quer descritiva quer argumentativa. Imaginemos, agora, que essa linguagem pode ser crítica. Aparecerá, assim, um sistema extremamente complexo, ao qual se pode aplicar a teoria darwinista da tentativa e eliminação do erro. Encontramos essas idéias no seguinte texto de Popper:“Se é aceitável a concepção da teoria darwinista como lógica situacional, então, poderemos explicar a estranha semelhança entre minha teoria acerca do crescimento do saber e o darwinismo: ambas seriam exemplos de lógica situacional. O elemento novo e especial do enfoque científico consciente do saber - da crítica consciente das conjecturas (por meio de críticas a elas dirigidas) - seria uma conseqüência do aparecimento de uma linguagem descritiva cujas descrições admitem crítica. O aparecimento de tal linguagem nos levaria a defrontar, de novo, uma situação altamente improvável e possivelmente única, talvez tão improvável quanto a própria vida. Contudo, dada tal situação, a teoria de crescimento exossomático do saber, por um processo consciente de conjectura e refutação, seguir-se-ia "quase" logicamente: toma-se parte da situação, bem como parte do darwinismo. (3)



2.



Segundo Popper, a teoria darwinista possui caráter metafísico e, portanto, não-científico. Ao contrário do que possa parecer, essa teoria não é suscetível de prova. Contudo, nem por isso deixa de ser importante instrumental científico, lançando muita luz sobre pesquisas de caráter concreto e prático. Sua grande oportunidade está no fato de permitir a análise e compreensão de um mecanismo de ação dos seres vivos. Popper argumenta que a teoria da evolução proposta por Darwin não é uma teoria científica, mas, sim, um "programa de pesquisa metafísica".(4)

Os pressupostos do programa darwinista de pesquisa metafísica poderiam ser assim expostos: A grande variedade de formas de vida existentes sobre a Terra origina-se de um único organismo. Donde se evidencia que a teoria é uma explicação histórica, havendo uma seqüência explicativa entre os membros que compõem as espécies.

A explicação para tal desenvolvimento tem um sentido lógico em função de certas idéias, tais como : a "hereditariedade", isto é, os descendentes reproduzem os organismos-pais de maneira bastante fiel; a "variação", ou seja, a existência, entre os membros componentes da espécie, de pequenas variações, muitas delas mutações hereditárias; a “seleção natural", isto é, a idéia de que existe um mecanismo pelo qual são eliminadas as variações impróprias, pelo perecimento da espécie ou do espécime, assim como existe o controle da transmissão do material hereditário, que se constitui em mutações convenientes; e a "variabilidade", isto é, o fato de que a própria capacidade de sofrer variações poder ser controlada pela seleção natural dos mais aptos.(5)

O argumento de Popper conclui que, ao contrário do que vulgarmente se pensa, a teoria darwinista não é uma teoria suscetível de prova. O darwinismo não tem poder explicativo suficiente para elucidar a evolução de uma grande variedade de formas de vida existentes sobre a terra. Apenas sugere que, se a evolução ocorrer, será sempre gradual. Esse é um dos aspectos fundamentais da teoria, por se constituir no cerne da árvore da evolução.

As mutações se constroem por meio de pequenas alterações de base genética nos seres vivos. Quando aparecem grandes mudanças, supõe-se a existência de estágios intermediários. Mas a grande indagação é sobre o sentido, a direção dessas mutações. A teoria da evolução sugere que as seqüências evolutivas se processam a esmo. É aqui que se verifica uma contribuição toda especial de Popper à teoria darwinista, conduzindo-a, talvez, à solução de uma série nova de problemas circunstanciais que, até o presente, colocavam-se como impasses à teoria.

A questão principal consiste em descobrir uma forma de explicar se há algum sentido na mutação nos seres vivos; em explicar como se pode conciliar as tendências ortogênicas e a mutação acidental. Colocando-a em um exemplo prático, toda a questão se resume em como explicar que o olho, com toda sua complexidade, pode resultar da cooperação puramente acidental de mutações independentes. Esse problema coloca a questão da existência de um sentido na evolução.


3.


A pressão externa e a seleção são distintas. A primeira é determinada pela ação do ambiente e a segunda, em função da pressão interna. A pressão seletiva interna provém do próprio organismo e, em última instância, de suas preferências (finalidades), embora estas possam mudar, respondendo às mudanças externas. A pressão interna é exercida por diferentes classes de genes: os que controlam principalmente a anatomia ("a"); e os que controlam principalmente o comportamento ("b"). Existem, aparentemente, os genes intermediários (inclusive os de funções mistas). Os genes "b" podem se apresentar como genes que controlam preferências ou finalidades ("p") e genes que controlam habilidades (“s”).6

Passemos, agora, à análise de algumas circunstâncias. Assim,pode-se afirmar que mudanças ambientais podem gerar novos problemas, que determinarão novas preferências ou finalidades; estas precipitarão o surgimento de alterações na natureza de habilidades, conforme as novas necessidades; e, finalmente, advirão modificações na estrutura anatômica dos indivíduos.


Jacques Monod analisa o comportamento como orientador das pressões de seleção: “Uma outra dificuldade para a teoria seletiva provém de que, freqüentemente, ela foi compreendida ou apresentada como algo que apela apenas para as condições de meio exterior como agentes da seleção. Eis uma concepção absolutamente errada, pois as pressões de seleção que as condições externas exercem sobre os organismos, em nenhum caso, são independentes das performances telenômicas características da espécie. Organismos diferentes, vivendo no mesmo "nicho" ecológico têm com as condições externas (inclusive com os outros organismos) interações muito diferentes e específicas. São essas interações específicas, em parte "escolhidas" pelo próprio organismo, que determinam a natureza e a orientação da pressão que ele sofre”.(7)

Vejamos um exemplo concreto: suponhamos um animal que, devido a um cataclisma natural, tem destruída sua principal fonte de alimentação. A mudança ambiental acarretará novos problemas. O animal imediatamente buscará novas preferências ou finalidades ("b"), isto é, procurará explorar novos tipos de alimentos. Essa tentativa favorecerá aqueles cuja estrutura de preferências ou de finalidades ("p") já antecipa o novo padrão de preferências ou finalidades. Em seguida, as mudanças na estrutura de habilidades ("s") serão processadas para conseguir o alimento e, finalmente, ocorrerão mudanças na estrutura anatômica (“a"). Dessa forma, Popper conclui afirmando que, nesses casos de ortogênese, a pressão seletiva interna é dirigida e sugere o seguinte tipo de esquema para a descrição do mecanismo interno ativado:

b

p s a


Isso significa que a estrutura de preferências e suas variações ("p") controlam a seleção da estrutura de habilidades e suas variações ("s"); conclui-se, portanto, que a estrutura de comportamento ("b") controla a seleção da estrutura anatômica e suas variações (“a”).(8)

O mecanismo acima descrito é dinâmico, de forma que a nova estrutura anatômica ("a") agirá como reforço, regressivamente, sobre a estrutura comportamental (b = p - s). Chegamos, portanto, à conclusão de que são as mutações da estrutura de preferências ou finalidades que deflagram a ortogênese.

Notamos que as relações entre "p", "s" e "a" ocorrem conforme os seguintes modelos:

I.Ação das mutações da estrutura de finalidade ("p") sobre a estrutura anatômica ("a"). Essa ação se processa segundo dois parâmetros: 1) alteração em "p" sem adaptação em "a" a espécie perece; 2) alteração em "p" com adaptação em "a" a espécie sobrevive.

II.Ação das mutações da estrutura anatômica ("a") sobre a estrutura de finalidade ("p"). Essa ação acontece conforme o seguinte processo: a estrutura anatômica pode sofrer alterações, então, a estrutura de finalidade corre o risco de se ver paralisada e podem seguir-se outras especializações anatômicas.

Essas considerações, embora de evidente complexidade, são fundamentais para resolver um dos problemas mais sérios com que se depara o evolucionismo, qual seja, o de identificar as razões pelas quais a evolução se processa no sentido de produzir as chamadas "formas superiores de vida". Em função da predominância de "p" no processo de mutação, é possível compreender melhor tal problema. Conforme J. Huxley: “Observando o processo da evolução biológica como um todo, veremos que ele tende à produção de tipos que podem utilizar mais recursos materiais do mundo com maior eficiência. Para tanto, os processos de metabolismo fisiológico são aperfeiçoados e surgem novos tipos de utilização metabólicas”.(9)

Dessa forma, as chamadas formas superiores de vida são, simplesmente, estruturas de preferências comportamentais mais ricas.

Quanto ao problema da separação e diversificação das espécies, pode ser entendido como resultado da separação de locais. O que isso significa é que qualquer alteração na estrutura comportamental preferencial poderá explicar o aparecimento de novas espécies.

Quanto ao problema da existência de um sentido para a evolução das espécies, ou processo de seleção dos mais aptos, Popper encaminha questão no sentido de compreendê-la, mais como proposta de solução de problemas do que, propriamente, como questão de sobrevivência. É certo que todo organismo está constantemente sob a ameaça de extinção, mas essa ameaça toma a forma de problemas a resolver. Por essa razão, podemos afirmar que compreender os organismos como solucionadores de problemas parece melhor do que considerá-los como perseguidores da própria sobrevivência. (10)

Entender o processo de seleção dos mais aptos como o problema de sobrevivência dos mais aptos é, sobretudo, elaborar uma construção tautológica. Afirmar que "os que sobrevivem são os mais aptos" é o mesmo que dizer que "os que sobrevivem são os que sobrevivem", já que os mais aptos são justamente os que sobrevivem."

Popper argumenta em favor de uma posição que podemos caracterizar como neo-darwinista. Segue-se dessa posição que os organismos estão constantemente empenhados na luta por soluções de problemas. Dessa forma, todos os "filos" (segmentos evolucionários dos organismos), ou seja, os mais recentes membros viventes, são as últimas soluções encontradas para esses problemas, sempre propostos pelo método de experiência e eliminação do erro. A eliminação do erro processa-se pela completa eliminação da forma malograda, com a destruição total do segmento errôneo, ou seja, pela evolução de controles que, alterando os órgãos ou formas de comportamento ou conjecturas, encontram uma resposta satisfatória para o problema.

Cada indivíduo isolado é uma ponta de lança na seqüência da evolução dos organismos de que faz parte. Em quase todos os sistemas, o organismo individual e seu comportamento desempenham a função de hipótese para solucionar problemas. Assim, o seu perecimento pode significar a eliminação do erro. O problema é a sobrevivência, e o método é a eliminação do erro, no caso, a morte do organismo.


4.


Existe um sistema no qual a eliminação do erro está sob controles capazes de eliminar o erro sem matar o organismo: é o sistema humano, no qual somos capazes de fazer hipóteses e conjecturas perecerem em vez de nós. J. Huxley diz:”Só recentemente emergimos da área biológica de evolução para a psicossocial, da biosfera terrena para a liberdade da noosfera. E não nos esquecemos o quanto isso é recente: somos verdadeiramente homens há apenas um décimo de milhão de anos - uma batida no relógio da evolução; mesmo como proto-homens, existimos há menos de um milhão de anos - menos de uma fração de dois milésimos do tempo evolutivo. Já não mais apoiados e impulsionados por um arcabouço de instintos, tentamos usar nossos pensamentos e propósitos conscientes como órgãos de locomoção e direção psicossocial através do emaranhado de nossa existência. Até agora, isso ocorreu com sucesso apenas moderado e à custa de uma produção de muita maldade e horror, ao lado de alguma beleza e a glória da consecução”.(12)

O grande momento do processo evolutivo seria aquele em que a evolução produz a atitude consciente e crítica. A interpretação popperiana desse instante permite uma certa solução para a questão da distinção entre Einstein e uma ameba. A esse propósito, Popper diz:”Admito que há uma diferença: ainda que seus métodos de movimentos de experiência e erro quase ao acaso ou à moda de nuvens não sejam fundamentalmente muito diferentes, há uma grande diferença em suas atitudes para com o erro. Einstein, diversamente da ameba, conscientemente tentou o melhor que pode; sempre que lhe ocorria uma nova solução, tentou mostrá-la falha, descobrir um erro nela: abordava suas próprias soluções criticamente. Acredito que essa atitude conscientemente crítica para com as próprias idéias é a única diferença realmente importante entre o método de Einstein e o da ameba. Ela possibilita a Einstein, com rapidez, rejeitar como inadequadas centenas de hipóteses, antes de examinar mais cuidadosamente uma ou outra hipótese que lhe parecesse capaz de suportar crítica mais seria”.(13)

A história da resolução de problemas atinge, no ser humano, seu momento de particular importância, e neste, é o desenvolvimento da linguagem o instante decisivo do processo de evolução biológica.

Jacques Monod assinala que, com base na linguagem, o ser humano passa a ter um novo fator em seu processo de evolução. Dessa forma, adquire a possibilidade de comunicar não apenas uma experiência concreta, mas um conteúdo de experiência subjetiva. Assim, as idéias passam a ser comunicáveis. Ele diz:”Uma evolução nova, a da cultura, toma-se possível. A evolução física do Homem devia prosseguir por muito tempo ainda, só que, doravante, estreitamente associada à da linguagem, sofrendo profundamente sua influência, que subvertia as condições da seleção. O homem moderno é o produto dessa simbiose evolutiva. Em qualquer outra hipótese, ele é incompreensível, indecifrável. Todo ser vivo é também um fóssil. Traz em si, e até na estrutura microscópica de suas proteínas, os traços, senão os estigmas, de sua ascendência. Isso é muito mais verdadeiro para o homem do que para qualquer outra espécie animal, em virtude da dualidade, física e "ideal", da evolução de que é herdeiro”.(14)

A linguagem não é um fenômeno exclusivamente humano. Também os animais a possuem. Mas as linguagens humanas superam, por várias razões, as linguagens animais. J. Monod afirma que:”O cérebro dos animais, indubitavelmente, é capaz não só de registrar informações, como também associá-las e restituir o resultado dessas operações na forma de uma performance individual; mas não, e este é o ponto essencial, em uma forma que permita comunicar a outro indivíduo uma associação ou transformação original, pessoal. Ao contrário, a linguagem humana permite isso, linguagem que, por definição, podemos considerar nascida a partir do dia em que combinações criadoras, associações novas, realizadas num indivíduo, puderam, transmitidas para outros, não mais perecer com ele”.(15)

Segundo Popper, os animais emitem sons que possuem duas funções inferiores. Primeiramente, reproduzem sons que podem ser entendidos como expressões ou sintomas, isto é, são expressivos dos estados do organismo que está a emitir os sons. É a função "expressiva ou sintomática" da linguagem. Em segundo lugar, esta exerce uma função "liberadora ou sinalizadora", uma vez que os sons emitidos, para ter significado de comunicação, exigem a existência de um emissor que produz os sinais, assim como a existência de um receptor que, sendo estimulado pela mensagem, reage ou responde ao som do emissor, transformando, dessa forma, esse som em sinal.

Esses dois tipos de linguagem, a "sintomática ou expressiva" e a "liberadora ou sinalizadora" são distintos. Nem toda linguagem "expressiva" é "sinalizadora", mas toda "sinalizadora" é "expressiva". São consideradas funções inferiores da linguagem, porque são comuns a seres humanos e animais; de igual forma, estão presentes nas chamadas funções superiores, utilizadas apenas pelo ser humano.

A terceira função seria a "descritiva". Ao descrevermos algum objeto, elaboramos uma linguagem com função "expressiva", já que emitimos sons. A função sinalizadora estará também presente, pois haverá, certamente, um interlocutor que receberá a mensagem, reagindo a ela. E, com certeza, existirá uma nova função nessa linguagem pois emitimos sons sobre alguma coisa, descrevendo-a ou mesmo formulando conjecturas e hipóteses a respeito das coisas, do que decorre toda a sua importância para o conhecimento científico.

A quarta função da linguagem é a "argumentativa". Sua função está diretamente ligada à atitude racional do ser humano. E como o surgimento da linguagem argumentativa está diretamente ligado ao aparecimento, em homens e mulheres, da capacidade crítica, essa função da linguagem é particularmente importante para o aparecimento das ciências.

São estas duas últimas funções da linguagem que peculiarizam a condição humana. Assim, por meio delas, foi possível ao ser humano criar conceitos tais como os de "verdade", como idéia reguladora da linguagem "descritiva", e "validez", como idéia reguladora da linguagem "argumentativa". As funções da linguagem aparecem em instantes diversos no processo biológico de evolução. Por isso, pode-se dizer que a função "descritiva" é prioritária sobre a função "argumentativa". A característica fundamental da linguagem "argumentativa" é que ela expressa uma atitude argumentativa, isto é, crítica e racional.

A importância das novas funções da linguagem fica mais evidente se acompanhamos a tese de que elas emergiram no processo evolucionário, juntamente com o ser humano e a racionalidade.

B. Magee procura captar o ponto central no argumento de Popper quando afirma:“Em outras palavras, a linguagem tomou viável o desenvolvimento da razão - melhor dizendo, foi parte integrante do desenvolvimento da razão - e permitiu a emergência do homem no seio do reino animal. (Incidentalmente, o fato de que o homem surgiu do reino animal como surgiu, passando lentamente por certas fases, significa ter ele vivido em grupos ao longo de vastos períodos; recordando esse fato, deve ser errônea a idéia, muito disseminada, de que todos os fenômenos sociais podem ser, em última análise, explicados em termos de natureza humana - com efeito, o homem foi um ser social muito antes de se transformar em ser humano). Segundo Popper, é a linguagem - no sentido de forma estruturada de contato, de comunicação, de descrição e de argumentação, por meio de símbolos, que nos torna humanos, não apenas como espécie, mas como indivíduos; a aquisição de uma linguagem é que toma possível a consciência completa do homem, a consciência do eu”.(16)


5.


Popper caracteriza o conhecimento humano como parte do processo de evolução da vida animal, no qual, partindo de algumas funções inferiores, a vida chega, em homens e mulheres, a funções superiores. Contudo, há uma profunda diferença entre a natureza da evolução animal - que se processa por meio da modificação de órgão já existente ou pela emersão de novos órgãos - e a evolução humana - que se processa pelo desenvolvimento de novos órgãos fora de nossos corpos, extrapessoalmente.

A evolução dos animais processa-se endossomaticamente. Entretanto, embora de forma rudimentar, já se esboçam entre eles modificações exossomáticas, como os ninhos dos pássaros e as tocas dos animais.

Só entre os seres humanos é que as modificações exossomáticas se tornam características. Em vez de aprimorar, realizar modificações somáticas, produzindo ou aperfeiçoando os próprios órgãos, homens e mulheres criam e 'desenvolvem novos órgãos fora de seu corpo, como óculos, telescópios, automóveis, telefones e até computadores.

A presença do ser humano no mundo é recente, se comparada com a de algumas formas de vida mais simples. As próprias modificações na natureza operadas pelo ser humano são insignificantes, se comparadas com aquelas produzidas por certas espécies vegetais, por exemplo. Contudo, o ser humano está criando um outro tipo de produto de sua própria e exclusiva fabricação, pelo qual poderá provocar incomensuráveis modificações no meio ambiente. Esses novos produtos são as idéias, os mitos e, especialmente, as teorias científicas. Popper diz:”Sugiro que podemos encarar esses mitos, essas idéias e teorias, como alguns dos produtos mais característicos da atividade humana. Como ferramentas, eles são órgãos que evoluem fora de nossa pele. São artefatos exossomáticos. Assim, podemos contar, entre esses produtos característicos, especialmente, o que é chamado "conhecimento humano"; e aqui tornamos a palavra "conhecimento" no sentido objetivo ou impessoal, em que se pode dizer que ele está contido num livro, ou armazenado numa biblioteca, ou ensinado numa universidades”.(17)

Assim, o principal produto da evolução humana é o conhecimento. Cabe, contudo, uma série de considerações sobre o significado do conhecimento científico.


6.


Podemos identificar dois significados para a palavra conhecimento. Primeiramente, conhecimento ou pensamento no sentido subjetivo, ou seja, enquanto significa um estado de espírito. Em segundo lugar, conhecimento ou pensamento no sentido objetivo, enquanto representa problemas, teorias e argumentos, sendo, portanto, considerado como um objeto pertencente ao mundo, totalmente desvinculado do sujeito conhecedor. É neste último sentido que se pode falar em conhecimento científico. O conhecimento científico constitui um mundo à parte, juntamente com as idéias, as instituições, a linguagem, a ética e as artes. É esse o mundo que, na linguagem de Popper, é identificado como "mundo 3".

A tese de Popper é que existe um "mundo 1", objetivo e constituído de coisas materiais; um "mundo 2", subjetivo, formado pelos conteúdos interiores e pelo conhecimento, existindo nas mentes dos indivíduos; e, finalmente, um "mundo 3" que, embora construído pelos seres humanos, independe amplamente deles. Até o presente momento, todas as epistemologias têm estudado o problema do conhecimento no sentido em que aqui identificamos como "mundo 2". Tanto racionalistas quanto empiristas procuram explicar o conhecimento como processo subjetivo de conhecer. Ora, por essa via jamais se conseguirá tocar nas questões fundamentais que envolvem o conhecimento científico, pois esse é fruto do "mundo 3".

O que importa para a compreensão do conhecimento científico é o estudo da situação dos problemas da ciência e das correspondentes conjeturas científicas. É necessário compreender a importância das buscas de soluções alternativas e da eficácia dos métodos de teste de que dispomos. O que importa para a epistemologia é o estudo do "mundo 3". Assim, podemos entender que uma teoria do conhecimento, no sentido que se atribui no "mundo 3", pode levar a grandes conquistas no que se refere à compreensão dos fenômenos da consciência e do conhecimento subjetivo ("mundo 2"). Não se verifica, porém, o inverso, ou seja, a epistemologia subjetivista não desvenda as dificuldades de compreensão dos problemas do conhecimento objetivo e independente do sujeito cognoscente.(18)

Popper oferece três teses de apoio a sua posição. Ele diz:”A primeira delas é que o terceiro mundo é um produto natural do animal humano, comparável a uma teia de aranha. A segunda tese de apoio (e, penso, uma tese crucial) é que o terceiro mundo é amplamente autônomo, embora constantemente atuemos sobre ele e sejamos atuados por ele: é autônomo, apesar do fato de ser produto nosso e de ter um forte efeito de retrocarga sobre nós; isto é, sobre nós como habitantes do segundo mundo e mesmo do primeiro. A terceira tese de apoio é que, por meio dessa interação entre nós e o terceiro mundo, é que o conhecimento objetivo cresce e que há estreita analogia entre o crescimento do conhecimento e o crescimento biológico, isto é, a evolução de plantas e animais”.(19)

É, portanto, sobre esse "mundo 3" que devemos prender nossa atenção, se tivermos como objetivo compreender o surgimento e o desenvolvimento do conhecimento científico. Popper identifica duas características do conhecimento objetivo, que destaca como fundamentais para seu argumento. Elas seriam a "objetividade" e a "autonomia".


7.


Popper argumenta que o conhecimento humano e, dessa forma, o conhecimento científico, são algo objetivo. Nesse sentido, constituem alguma coisa, mesmo sem a existência do cientista ou do sujeito que conhece. O conjunto de teorias, problemas e argumentos, embora seja produto do ser humano, é algo real em si mesmo, independentemente da produção e da compreensão humanas. Um livro pode ter sua existência real independentemente da ação humana, ao ser produzido por um computador. Continua a existir como uma forma de conhecimento objetivo, embora nunca venha a ser lido por alguém.

Tratando do problema da objetividade do conhecimento, Popper afirma:”Para ver isso claramente, podemos imaginar que, depois de haver perecido a raça humana, alguns livros ou bibliotecas possam ser encontrados por alguns sucessores nossos civilizados (não importa que sejam animais terrestres civilizados ou alguns visitantes do espaço exterior). Esses livros podem ser decifrados. Podem ser aquelas tábuas de logarítimos nunca antes lidas, só para argumentar. Isso toma inteiramente claro que nem sua composição por animais pensantes nem o fato de não haverem sido realmente lidos ou entendidos é coisa essencial para fazer de algo um livro, sendo suficiente que possa ser decifrado”.(20)

Outra característica fundamental do conhecimento científico e do "mundo 3" é a sua "autonomia". O conhecimento humano, embora produzido pelo ser humano, criado pelo ser pensante, cria, uma vez produzido, seu próprio domínio de autonomia. O ser humano cria o mundo do conhecimento e, especialmente, o conhecimento científico. Este, porém, por sua parte, também cria seus próprios problemas. Surgem, assim, no mundo do conhecimento científico, novos problemas, novas soluções e, até mesmo, inesperadas refutações. Essa "autonomia" do conhecimento, porém, é relativa, por ele ter sido criado por homens e mulheres.

Popper argumenta que o "mundo 3", em que se compreende justamente o conhecimento científico, é dotado de existência própria e pode existir independentemente da ação humana que lhe dá origem. Uma vez originado, é relativamente autônomo, por se circunstanciar em muitos aspectos, independentemente da ação humana. Portanto, o "mundo 3" é, justamente, o produto da criação humana, mas torna-se independente dela. Basicamente, esse produto se constitui de mitos, idéias e, especialmente, teorias científicas.

Há, contudo, um processo pelo qual nossas teorias sofrem mutações ou, se quisermos, cresce o conhecimento humano. De maneira similar ao processo de evolução biológica, o conhecimento científico, no sentido objetivo, sofre modificações pelo método da tentativa e eliminação do erro. O conhecimento corresponde a uma das formas de adaptação do ser humano ao mundo em que vive.

Essa análise biológica ou evolucionista é extremamente apropriada para explicar uma série de fenômenos próprios do progresso da ciência. Ao afirmarmos que o conhecimento racional e, portanto, o conhecimento científico são formas de o ser humano adaptar-se ao meio ambiente e, até mesmo, agir sobre ele, estamos identificando o conhecimento como forma de adaptação biológica a seu nicho ecológico.


8.


Popper argumenta que existem três níveis em que se processa a adaptação do ser humano e nesses três níveis, o processo de adaptação é sempre o mesmo(21)

I. A adaptação genética, que corresponde à mutação de um gene; isso altera a relação com o meio ambiente, do que se segue a possibilidade de novas adaptações genéticas.

II. A adaptação comportamental, que corresponde à mutação do comportamento; isso significa a mudança do próprio meio ambiente, do que se seguirão pressões no sentido de que novas alterações genéticas se processem.

III. A adaptação cognitiva, isto é, uma das formas de o ser humano adaptasse, sofrer mutações. Essa adaptação acontece por meio da produção de conhecimento científico.

Com base em problemas ou situações-problema, o ser humano propõe certas conjecturas ou hipóteses que talvez resolvam esse primeiro problema. Mas novos problemas surgirão, ainda mais profundos e comprometedores, cuja solução conjetural proporá outros ainda mais numerosos. Assim evolui o conhecimento científico.

Popper argumenta que todo o processo de adaptação parte da existência de uma "estrutura herdada", que se corresponde nos três níveis. Assim, há a "estrutura genética do organismo", que é o fundamento da adaptação genética; há o "conjunto inato de padrões de comportamento", que é o fundamento da adaptação comportamental; e, finalmente, as "teorias e conjecturas científicas vigentes", que constituem o fundamento da adaptação cognitiva. Essas estruturas herdadas são sempre transmitidas pela instrução. Assim, o ser humano é instruído genética, comportamental e cognitivamente.

Essas "estruturas herdadas" sofrem certas pressões, que exigem mutações, adaptações ou evolução. Assim, as instruções herdadas, quer geneticamente quer pela tradição, estão sujeitas a pressões, desafios e problemas e, conseqüentemente, sofrem variações. Porém, há ainda um problema a ser resolvido, pois a "estrutura herdada" sofre pressões que surgem no interior da própria estrutura, podendo ocorrer, assim, modificações ou variações nas "instruções herdadas". Cabe, ainda, indagar sobre a forma pela qual se processa a "seleção" entre mutações ou variações possíveis.

A seleção se processa pelo método do ensaio e da eliminação do erro. Assim, as tentativas não adaptadas perecem, enquanto as mais adaptadas e de maior sucesso se transmitem. Dessa forma, embora o processo caminhe para mutações solucionadoras de problemas, jamais atingimos uma solução final. Há sempre a possibilidade de uma nova mutação mais apropriada para atender as pressões exercidas sobre a estrutura. Na análise de Popper:”Cumpre notar que, via de regra, não se atinge o estado de equilíbrio adaptativo em qualquer aplicação do método da tentativa e eliminação do erro, isto é, pela seleção natural. Em primeiro lugar, porque soluções perfeitas ou ótimas para o problema dificilmente se apresentam. Em segundo lugar - e este é o ponto importante -, porque a emergência de novas estruturas ou de novas instruções provoca uma alteração da situação ambienta]. Elementos novos dos ambientes podem tornar-se relevantes: em conseqüência, novas pressões, novos desafios e novos problemas podem manifestar-se, como resultado de mudanças estruturais que surgiram de dentro do organismo.(22)


9.


A teoria da ciência inspirada nessa perspectiva evolucionista estabelece as bases para uma teoria evolutiva do progresso científico. Assim, poderíamos esquematizar o processo de evolução biológica da seguinte forma:


estrutura -> pressões -> seleção -> NOVA
herdada novas pela ESTRUTURA
pela instrução tentativa HERDADA
e erro PELA
INSTRUÇÃO


Esse esquema revela que, no processo de evolução biológica e científica, agem fatores de ordem dinâmica, revolucionária e progressista, bem como elementos de ordem conservadora, histórica ou tradicional. O jogo entre instrução e seleção evidencia a natureza do progresso científico. A instrução age como elemento conservador - ao identificar a estrutura herdada - e a seleção, como elemento dinâmico - ao indicar o sentido da evolução. Dessa forma, a evolução se processa a partir da existência de uma estrutura à qual pertence a instrução. Isso sugere que, no processo de evolução do conhecimento científico, as teorias têm prioridade sobre a experimentação. Como diz textualmente Popper:”Com efeito, sustento que não existe instrução proveniente do exterior da estrutura, ou seja, a passiva recepção de um fluxo de informações que se imprime nos órgãos dos sentidos. Todas as observações se acham impregnadas por teorias: não há observação pura, desinteressada, independente de teoria. (Para perceber que assim acontece, podemos tentar, usando um pouco de imaginação, comparar a observação feita pelo homem com a observação feita por uma formiga ou por uma aranha)”.(23)

Há, portanto, um esquema válido que representa uma descrição racional da emersão do ser humano no processo evolucionário, da autotranscendência por meio da seleção e da crítica racional.

Esse esquema torna evidente a analogia que existe entre a evolução biológica, até o surgimento do ser humano, e o processo de crescimento do conhecimento científico.

Usando "P" para a representação de problemas, "TT' para teorias ou soluções experimentais e "EE" para eliminação do erro pela discussão crítica, podemos escrever o processo evolucionário fundamental do conhecimento humano da seguinte forma:

P -> TT -> EE –> P

Contudo, esse processo não é cíclico, já que o segundo problema não se identifica com o primeiro. O segundo problema, sendo fruto de nova situação que se construiu com a proposta de soluções e eliminação de erros, certamente, terá características diferentes do primeiro. Assim, o esquema pode ser refeito para:

P1 -> TT -> EE -> P2

Com base em um problema (Pl), procuramos construir uma solução provisória, que possa ser submetida a testes, uma teoria tentativa (TT). Adotamos, a seguir, uma atitude crítica, objetivando eliminar os erros da teoria (EE). Assim, o processo evolui para a produção de um novo problema. O resultado do processo é a emersão de um novo problema, ou, o que sói acontecer de fato, de novos problemas.

Um problema inicial pode sofrer a concorrência de várias teorias ou tentativas de resolvê-lo. Todas essas teorias devem ser alvo da atitude crítica, buscando eliminar o erro que possam conter. Surgem, dessa forma, novos problemas mais profundos. Assim, o esquema poderia ser reescrito da seguinte maneira:


TTa -> EEa -> P2a
P1 -> TTb -> EEb -> P2b
TTn -> EEn -> p2n

Esse processo é de natureza evolutiva, aplica-se tanto à evolução biológica dos seres vivos como ao progresso do conhecimento científico. Popper diz:”Assim, meu esquema quádruplo pode ser usado para descrever a emersão de novas soluções, isto é, novas teorias; e quero mesmo apresentá-lo como uma tentativa de dar sentido à idéia admitidamente vaga de emersão - como uma tentativa para falar de emersão de maneira racional. Gostaria de mencionar que ele pode ser aplicado não só à emersão de novos problemas científicos e, conseqüentemente, de novas teorias científicas, mas também à emersão de novas formas de comportamento e mesmo de novas formas de organismos vivos”.(24)

Apesar da confissão de Popper(25), de haver proposto seu esquema evolucionário, ao tentar interpretar o processo trifásico da dialética tese-antítese-síntese, considerando-a como uma forma do método de tentativa e erro, podemos notar que a similaridade entre os dois processos é apenas superficial.(26) No processo dialético hegeliano, as contradições são partes integrantes do processo, não devendo, portanto, ser eliminadas; representam elementos impulsionadores do processo, não havendo lugar para a atitude crítica.

Em Conjecturas e refutações, Popper diz:”De que forma pode Hegel vencer a refutação kantiana do racionalismo? Muito simplesmente, alegando que as contradições não são importantes. Elas não podem deixar de ocorrer no desenvolvimento do pensamento da razão e demonstram a insuficiência de uma teoria que não leva em conta o fato de que o pensamento, isto é, a razão - e com ela (de acordo com a filosofia da identidade) a realidade - não é algo fixo, mas está em processo; que vivemos num mundo em evolução”.(27)

Por outro lado, no esquema evolucionário a eliminação do erro processa-se por meio das críticas que procuram identificar as contradições e eliminá-las. A eliminação das contradições significa o crescimento do conhecimento na busca da verdade. Portanto, o esquema evolucionário de Popper não pode ser entendido como análogo ao processo dialético hegeliano.

Conforme podemos depreender do esquema evolucionário, o conhecimento científico começa com problemas e termina com problemas. Inicia-se pelo problema, com todas as suas implicações. De um ponto de vista lógico, a primeira etapa do processo de conhecimento é a identificação da situação-problema. Há, contudo, certos aspectos da questão que merecem uma análise mais aprofundada.

O primeiro consiste em identificar qual a relação que existe entre problemas e teorias. E o segundo é a indagação sobre qual a relação de prioridade existente entre as teorias, ou hipóteses conjeturais, e a observação, ou teste de eliminação do erro.


10.

A primeira questão é de difícil solução, porque, embora os problemas aparentemente surjam primeiro, todo problema nasce sempre num contexto teórico. O problema teórico aparece sempre em função de um problema prático; por outro lado, a formulação de um problema prático está sempre envolvida no problema teórico. Assim, podemos chegar à conclusão de que as teorias, como soluções conjeturais para os problemas, e os problemas com os quais estamos envolvidos devem ter surgido ao mesmo tempo. Toma-se impossível, pelo menos por enquanto, separá-los.

Por outro lado, é relativamente fácil a solução do segundo problema, ou seja, o de determinar qual, dentre a teoria e a observação, é o elemento prioritário. A observação é sempre precedida por nosso interesse particular, por uma indagação, por um problema ou por uma hipótese. Portanto, há algo teórico e especulativo que precede toda experimentação. Todos os seres vivos possuem, de forma inata, certas expectativas. A posição de Popper parece clara quando afirma:”Minha tese de que a indagação, ou a hipótese, deve preceder a observação pode, a princípio, ter parecido paradoxal;'mas podemos ver agora que não é, absolutamente, paradoxal supor que expectativas - isto é, disposições para reagir - devam preceder cada observação e, de fato, cada percepção: certas disposições ou propensões para reagir são inatas em todos os organismos, ao passo que as percepções e as observações claramente não são inatas. E, embora as percepções e, mais ainda, as observações desempenhem papel importante no processo de modificar nossas disposições ou propensões para reagir, algumas dessas disposições ou propensões devem, sem dúvida, estar presentes primeiro ou, então, não poderiam ser modificadas.(28)

O argumento de Popper é que, sem que existam hipóteses funcionando como guias na busca dos resultados, torna-se impossível a observação. Assim, baseamo-nos em hipóteses que são testadas pela observação, que se fundamentam em hipóteses anteriores. Podemos regredir nesse processo até compreendermos que as mais antigas teorias científicas se constroem sobre mitos pré-científicos e explicações metafísicas. Estas, por sua vez, constroem-se com base em expectativas inatas.


11.


Outro aspecto dessa posição refere-se à relação existente entre a teoria da evolução e a teoria do conhecimento. O foco central dessa relação está em que é necessário o desenvolvimento, tanto nos seres vivos como no conhecimento humano, ou talvez seja mais preciso falar em necessidade de progresso.

Popper insiste na idéia de que o tema sobre a natureza do progresso científico não se esgota ao ser tratado apenas numa perspectiva biológica. Ele propõe que seja tratado também conforme certas exigências lógicas.

Há duas propostas de ordem lógica que devem ser analisadas. A primeira refere-se à necessidade de que a teoria proposta, para significar progresso do conhecimento científico, esteja em conflito e seja capaz de suplantar a teoria anterior.(30) Uma teoria representa tanto mais avanço da ciência quanto mais ela contradiz a teoria vigente. A contradição é a forma mais perfeita de oposição entre as proposições. A contraditória de uma proposição consiste na negação de tudo quanto ela afirma. Inexiste, dessa forma, qualquer conveniência entre duas proposições contraditórias.(31) Assim, a teoria científica que representa indiscutível progresso científico deve expressar uma perfeita oposição à teoria até então vigente. Representando uma forma menos perfeita de oposição - como contrariedade e subcontrariedade -, ela significará avanço menor no conhecimento científico. Fica estabelecido, portanto, que o progresso científico, digno de nota, é altamente revolucionário.
O argumento de Popper implica, ainda, a identificação do caráter conservador da evolução científica. A teoria que expressa o progresso da ciência deve ser capaz de explicar os problemas que eram resolvidos pelas teorias anteriores a que ela se opôs. A nova teoria deve demonstrar-se tão boa quanto a teoria anterior, mas deve ser capaz de solucionar outros fatos e casos, que se colocavam como impasse para a teoria anterior.

O progresso científico é caracterizado por sua natureza lógica ambígua. É revolucionário, por constituir o choque, a oposição entre teorias e a conseqüente superação de uma pela outra. Contudo, é também conservador, porque a teoria nova contém em si os objetivos (solução de situações-problema) da teoria suplantada. Essa caracterização lógica do progresso científico é de fundamental importância pois permite a conclusão de que o conhecimento científico mantém caráter racional, embora em processo de evolução; isto é, podemos julgar racionalmente as teorias científicas e podemos identificar as que realmente representam algum progresso do conhecimento científico. Popper diz:”O aspecto desses dois critérios lógicos, agora enunciados, é o de que permitem decidir, diante de uma teoria nova, mesmo antes de submetê-la a testes, se ela se mostrará melhor do que a teoria anterior (contanto, é claro, que resista aos testes). Isso significa, naturalmente, que dispomos, no âmbito da ciência, de algo semelhante a um critério que permite julgar as qualidades de uma teoria, tomando outras teorias como base; significa, em suma, que dispomos de meios para ajuizar do progresso. Significa, ainda, que o progresso, em ciência, pode ser racionalmente ajuizado. Essa possibilidade de julgar racionalmente o progresso explica por que, em ciência, apenas as teorias progressistas são tidas como interessantes; e explica, assim, por que, como questão de fato, a história da ciência é, em linhas amplas, uma história do progresso. (A ciência, aliás, parece o único tipo de atividade humana em que o fenômeno se constata.)”(32)

Por outro lado, a necessidade do progresso é algo inerente à própria natureza racional da ciência. Se o desenvolvimento contínuo acabasse, a ciência deixaria de ser racional e empírica.

A cada instante, novas conjecturas são formuladas para problemas talvez novos, talvez velhos. Nossas novas conjecturas são formuladas baseadas na crítica às conjecturas já existentes. Continuamente, novos experimentos são planejados, na intenção de testá-las e destruí-las. Esse processo é infinito e deverá acontecer indefinidamente, porque infinita é a ignorância do ser humano e é premente a força da necessidade de solução dos problemas.

A solução de alguns problemas coloca-nos diante de uma nova situação, que implica em novos problemas, crescendo sempre em profundidade, exigindo, assim, que nossas soluções se tomem mais sugestivas e ousadas.

Ao desenvolver essa noção de progresso em ciência, Popper afirma:”Como usei a palavra "progresso" várias vezes, será melhor garantir que não serei visto como um crente na lei histórica do progresso. Na verdade, já tive várias oportunidades de atacar essa crença e sustento que mesmo a ciência não está sujeita a qualquer coisa parecida. A história da ciência, como a história de todas as idéias humanas, é feita de sonhos irresponsáveis, de erros e de obstinação. Mas a ciência é uma das poucas atividades humanas - talvez a única - em que os erros são criticados sistematicamente (e com freqüência corrigidos). Por isso, podemos dizer que, no campo da ciência, aprendemos muitas vezes com nossos erros; por isso, podemos falar com clareza e sensatez sobre o progresso científico. Na maior parte dos outros campos de atividade do homem, ocorrem mudanças, mas raramente há progressos - a não ser em uma perspectiva muito estreita de nossos objetivos neste mundo. Quase todos os ganhos são neutralizados por alguma perda e quase nunca sabemos como avaliar as mudanças”.(33)


12.


Essa concepção de progresso científico, proposta por Popper, seria incompleta sem uma análise das características lógicas do sentido do progresso na ciência. Em outras palavras, a noção de progresso científico implica a identificação dos elementos componentes de uma boa teoria científica, antes de ser submetida a certos testes tidos como cruciais. Em última instância, coloca-se o problema da identificação do critério de progresso, ou seja, do critério para a escolha racional entre teorias. Popper chamou-o de "critério de satisfatoriedade potencial relativa". E, após afirmá-lo como princípio simples e intuitivo, caracterizou-o como aquele que nos permite preferir a teoria que afirma mais coisas.(34)

Considera-se potencialmente preferível a teoria cujo conteúdo informativo é superior ao das teorias concorrentes. Chama-se conteúdo informativo, para distinguir de conteúdo lógico (classes de todas as conseqüências lógicas deduzíveis do enunciado ou teoria), a noção intuitiva de que os enunciados ou teorias têm maior poder explicativo e preditivo quanto maior for seu grau de proibição ou exclusão, ou seja, tanto mais afirmam quanto mais proíbem ou excluem. Dessa forma, podemos concluir que se entende por conteúdo informativo de uma teoria o conjunto de enunciados que se mostram incompatíveis com a mesma teoria. Esses enunciados é que se constituem em falseadores potenciais da teoria, e esta terá caráter dogmático e não científico, se essa classe de proposições estiver vazia. Neste último caso, a teoria não será falseável.(36) Assim, a teoria de maior conteúdo informativo é aquela que pode ser mais severamente testada com os dados da observação, constituindo, contudo, a teoria mais conjetural, mais ousada e informativa. À medida que aumentamos ou diminuímos a quantidade de informações de uma teoria, concomitantemente, aumentamos ou diminuímos seu conteúdo informativo e seu conteúdo lógico.

Desenvolvendo esse mesmo argumento Hermann Bondi afirma:”Quando se formula uma teoria, fazem-se afirmativas universais, gerais. Uma vez submetida a teste, sabemos que a teoria abrange certa gama de fenômenos, certa gama limitada, dentro de limitada medida de acuidade e precisão. A interpretação da teoria, como algo que é Verdade, com "V" maiúsculo (expressão que, a meu ver, não tem qualquer relação com a ciência), esta pode sofrer abalo. Naturalmente, buscar-se-á descrição melhor, que abranja campo mais amplo de fenômenos com maior precisão, mas que seja, também, refutável. Se não for refutável, não terá interesse científico. Assim, a natureza do progresso está em que seus pontos cruciais correspondem mais a abalos do conhecimento do que a ganhos de conhecimento. Estaria, contudo, errado, se dissesse que o ganho de conhecimento não é, por sua vez, progresso. Ocorre, apenas, que o ganho de conhecimento não é a linha direta para o progresso”.(37)

Portanto, existe uma relação necessária entre conteúdo lógico e informativo. Acompanhando a exposição de Popper, podemos apresentar o seguinte exemplo: tomemos a teoria gravitacional de Newton ("N"). Dessa forma, qualquer enunciado incompatível com "N" pertencerá ao conteúdo informativo de "N". Tomemos, a seguir, a teoria da gravitação de Einstein ("E"); como essa teoria é incompatível com "N", ela faz parte do conteúdo informativo de "N". Do que, se ambas se proíbem, ambas se pertencem. Dentro de um prisma lógico de análise, teríamos: se "E" pertence ao conteúdo informativo de "N", segue-se que não-"N" pertence ao conteúdo lógico de "E" e não-"E" pertence ao conteúdo lógico de "N"; logo, não-"E" decorre de "N" e não-"N" decorre de "E". Portanto, todo esse raciocínio seria impossível sem a descoberta e formulação de "E".

Seria impossível compreender totalmente a teoria gravitacional de Newton sem a formulação da teoria gravitacional de Einstein.(38) Do que se conclui que a teoria somente atinge toda a sua compreensão quando são identificados todos os infinitos enunciados que constituem seu conteúdo informativo e quando são descritas todas as infinitas conseqüências que seriam deduzíveis da teoria em questão. Ora, tal obra é impossível de realizar. Diz Popper:”Essa situação curiosa tenho descrito em minhas preleções, afirmando: nunca sabemos acerca de que falamos. De fato, quando formulamos uma teoria ou procuramos entender uma teoria, também formulamos ou tentamos compreender suas implicações lógicas, isto é, todos os enunciados que dela decorrem. Todavia, como sublinhamos, semelhante tarefa é impossível de concretizar: há uma infinidade de enunciados não-triviais impredizíveis, que fazem parte do conteúdo informativo de uma teoria, e uma correspondente infinidade de enunciados, que fazem parte de seu conteúdo lógico. Não é possível, pois, conhecer ou compreender todas as implicações de uma teoria ou sua plena significação.(39)

Portanto, chegamos, até aqui, à conclusão de que, por meio de revoluções e cumulações, o conhecimento científico evolui no sentido de novas teorias, mais ousadas e portadoras de maior conteúdo informativo. A conseqüência é que a ciência progride na direção de teorias cuja probabilidade (no sentido matemático) é decrescente. Conforme constatamos, a evolução do conhecimento se processa no sentido de novas teorias de conteúdo informativo crescente; ora, isso implica que avançamos em direção a teorias de probabilidade cada vez menor.

Portanto, alta probabilidade e teorias mais informativas são incompatíveis entre si. Popper emprega um interessante raciocínio matemático para evidenciar sua proposta. Assim, a expressão do cálculo de probabilidade indica que

P(a) > P(ab) < P(b)

A probabilidade de "a" é igual ou maior do que a probabilidade de "a+b". A probabilidade de "a+b" é igual ou menor do que a probabilidade de "b". Por outro lado, se compararmos os enunciados "na sexta-feira choverá" (a); "no sábado fará tempo bom" (b) e "na sexta-feira choverá e no sábado fará tempo bom" (ab) é óbvio que o conteúdo informativo de "ab" é maior do que o de seu componente "a" e o componente "b"; também é óbvio que a probabilidade de "ab" será menor do que a probabilidade de qualquer um dos seus componentes, "a" ou "b". Isto é, a probabilidade de que na "sexta-feira chova" é igual ou maior do que a probabilidade de que na "sexta-feira chova e no sábado faça tempo bom"; a probabilidade de que na "sexta-feira chova e no sábado faça tempo bom" é igual ou menor do que a probabilidade de que "no sábado faça tempo bom".(40)

Chegamos, portanto, à conclusão de que a ciência evolui no sentido de proposições improváveis. Dessa forma, a teoria cujo conteúdo informativo fosse infinito, seria a verdade absoluta, portanto, de probabilidade O (zero); por outro lado, a teoria cujo conteúdo informativo fosse tendente a zero teria probabilidade tendente a 1 (um), portanto, seria necessária. Um enunciado se torna tanto mais necessário quanto menos informar, e tanto menos provável quanto mais ilustrar o conhecimento. Em Popper, podemos encontrar a seguinte colocação:”Visamos assim, na ciência, um conteúdo informativo elevado, se o progresso do conhecimento quer dizer sabermos mais (sabermos "a" e "b" e não apenas "a"), aumentando assim o conteúdo das nossas teorias. Precisamos admitir, portanto, que almejamos a baixa probabilidade - no sentido do cálculo de probabilidade. Como uma baixa probabilidade significa uma alta probabilidade de refutação, segue-se que um grau elevado de refutabilidade ou testabilidade é um dos objetivos da ciência - na verdade, é o mesmo que o elevado conteúdo informativo. O critério de adequação potencial é, por conseguinte, a testabilidade ou improbabilidade: só merecem ser testadas (e não apenas potencialmente) as teorias satisfatórias, se passarem em testes rigorosos - especialmente aqueles que reconhecemos como cruciais antes mesmo de efetuá-los”.(41)


Conclusão


Ao final deste capítulo, é importante destacar algumas conclusões dos argumentos de Popper. Segundo ele, os problemas precedem as soluções e esse seria o processo evolutivo biológico e gnoseológico. Biologicamente, ele se expressa na prioridade da expectativa sobre a observação e, gnoseologicamente, significa a anterioridade das hipóteses sobre as soluções observáveis. Do que se conclui que o crescimento do conhecimento resulta de um processo de seleção das hipóteses mais aptas. O conhecimento cresce de velhos problemas para novos problemas, por meio de conjecturas e refutações.

Pode-se expressar o crescimento evolucionário das espécies vivas da seguinte forma:

P1 -> TT -> EE -> X
-------------------
evolução biológica


As espécies vivas, ao se depararem com um problema (Pl), ensaiam soluções tentativas (TT); pela eliminação de possíveis erros (EE), procuram ajustar suas soluções aos problemas imperantes. Se a eliminação do erro (EE) resulta na eficiência da solução proposta (TT) temos, então, um novo problema mais profundo. Contudo, se a tentativa fracassa, a espécie pode perecer (X). Como conseqüência disso, o fim do processo evolucionário nos seres vivos é sempre uma incógnita.

Por outro lado, o crescimento evolucionário das teorias pode ser indicado no seguinte'esquema:(42)

P1 -> TT -> EE -> P2
---------------------------
crescimento do conhecimento

Segue-se da posição de Popper que, a partir de um problema (P1), após a tentativa de solução por meio de hipóteses e conjecturas (TT) severamente testadas (EE) no sentido da eliminação do erro, teremos sempre um novo ou novos problemas (P2). Do que se conclui que somos falíveis e propensos ao erro, mas podemos aprender com nossos enganos. Nossas teorias são conjecturas ousadas que não podemos justificar, mas que podemos criticar racionalmente, adotando as que possuem maior poder explicativo.

Portanto, nos organismos vivos, a evolução se processa de forma peculiar: eles evoluem tateando soluções e, via de regra, os ensaios errôneos são corrigidos com a eliminação do organismo portador do engano. No ser humano, porém, a vida gerou um ser capaz de quebrar essa cadeia de violência.

Segundo Popper, a racionalidade crítica aparece nos homens e mulheres como um instrumento de sobrevivência. Ele afirma:”Faz parte de minha epistemologia que, no homem, pela evolução de uma linguagem descritiva e argumentativa, tudo isso foi radicalmente mudado. O homem atingiu a possibilidade de ser crítico de suas próprias tentativas, de suas próprias teorias. Essas teorias já não são incorporadas em seu organismo ou em seu sistema genético; podem ser formuladas em livros ou em jornais; e podem ser discutidas criticamente e demonstradas como errôneas, sem a necessidade de matar seus autores ou queimar qualquer livro, sem destruir seus "portadores". Nesse sentido, possuímos uma nova possibilidade: nossos ensaios, nossas hipóteses tentativas podem ser criticamente eliminados pela discussão racional, sem necessidade de que sejamos eliminados. Esse é, sem dúvida, o propósito da discussão racional”.(43)

Com a possibilidade da crítica racional, o ser humano pode ensaiar, testar e alterar as propostas de solução irracional. Por meio do conhecimento humano, pode-se tornar obsoleto o uso da violência. Essa é a grande conclusão da epistemologia popperiana, e é nisso que, em relação às epistemologias do século XIX, ela se posiciona de forma original. O evolucionismo é uma maneira que Popper encontra para dar contornos realistas a sua epistemologia. É justamente em função de tais pressupostos que Popper pode assegurar que a razão crítica é a única alternativa de que dispomos, até agora, para a violência.


Notas e referências


1. POPPER, KARL R. Autobiografia intelectual. São Paulo, Cultrix/Edusp, 1977, p. 87.

2. MONOD, JACQUES. "A propósito da teoria molecular da evolução", in ROM HARRÉ (org.) Problemas da revolução científica. São Paulo, Itatiaia/Edusp, 1976, p, 36.

3. POPPER, KARL R. op. cit., p. 179.

4. Idem, ibidem, p. 177.

5. Idem, ibidem, pp. 181-182.

6. Idem, ibidem, p. 183.

7. MONOD, JACQUES. O acaso e a necessidade. Rio de Janeiro, Vozes, 1971, p. 144.

8. POPPER, KARL R. op. cit., p. 184.

9. HUXLEY, JULIAN. Ensaios de um humanista. Rio de Janeiro, Labor do Brasil, 1977, p. 71.

10. POPPER, KARL R. op. cit., p. 187.

11. Idem, Conhecimento objetivo. São Paulo, Itatiaia/Edusp, 1975, p. 221.

12. HUXLEY, JULIAN. op. cit., pp. 106-107.

13. POPPER, KARL R. op. cit., p. 226.

14. MONOD, JACQUES. op. cit., p. 179.

15. Idem, ibidem, p. 147.

16. MAGEE, BRYAN. As idéias de Popper. São Paulo, Cultrix/Edusp, 1974, pp. 63-64.

17. POPPER, KARL R. op. cit., pp. 261-262.

18. Idem, ibidem, p. 152.

19. Idem, ibidem, p. 114.

20. Idem, ibidem, p. 117.
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21. Idem, "A racionalidade das revoluções científicas", in ROM HARRÉ (org.) Problemas da revolução científica. São Paulo, Itatiaia/Edusp, 1976, pp. 92 ss.

22. Idem, ibidem, p. 94.

23. Idem, ibidem, p. 98.

24. Idem, Conhecimento objetivo. São Paulo, Itatiaia/Edusp, 1975, p. 264.

25. Idem, Autobiografia intelectual. São Paulo, Cultrix/Edusp, 1977, p. 140.

26. Idem, Conhecimento objetivo. São Paulo, Itatiaia/Edusp, 1975, pp. 126-127.

27. Idem, Conjecturas e refutações. Brasília, Unb, 1981, p. 357.

28. Idem, Conhecimento objetivo. São Paulo, Itatiaia/Edusp, 1975, p. 316.

29. Idem, ibidem, pp. 320 ss.

30. Idem, "A racionalidade das revoluções científicas", in ROM HARRÉ (org.) Problemas da revolução científica. São Paulo, Itatiaia/Edusp, 1976, pp. 102 ss.

31. MARITAIN, JACQUES. Lógica menor. Rio de Janeiro, Vozes, 1971, pp. 134 ss.

32. POPPER, KARL R. "A racionalidade das revoluções científicas", in ROM HARRÉ (org.)Problemas da revolução científica. São Paulo, Itatiaia/Edusp, 1976, p, 103.

33. Idem, Conjecturas e refutações. Brasília, Unb, 1981, p. 242.

34. Idem, ibidem, pp. 242 ss.

35. Idem, Autobiografia intelectual. São Paulo, Cultrix/Edusp, 1977, pp. 32 ss.

36. Idem, A lógica da pesquisa científica. São Paulo, Cultrix/Edusp, 1975, pp. 88 ss.

37. BONDI, HERMANN. "Que é progresso em ciência?", in ROM HARRÉ (org.) Problemas da revolução científica. São Paulo, Itatiaia/Edusp, 1976, p. 20.

38 S.POPPER, KARL R. Autobiografia intelectual. São Paulo, Cultrix/Edusp, 1977, pp. 33-34.

39. Idem, ibidem, p. 34.

40. Idem, Conjecturas e refutações. Brasília, Unb, 1981, p. 243.

41. Idem, ibidem, p. 245.

42. BOUVERESSE, RENÉE. Kart Popper. Paris, Vrin, 1978, p. 134.

43. POPPER, KARL R. De Vienne a Francfort - La querelle allemande des sciences sociales. Paris, Complexe, SPRL, 1979, p. 240.
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