quinta-feira, 4 de março de 2010

CAPÍTULO 7 - Conhecimento e Objetividade

CONHECIMENTO E OBJETIVIDADE




“Nosso ponto de partida cartesiano é que, quase literalmente, não conhecemos em que tipo de mundo estamos: todos os sistemas de fé concorrentes validam-se intrinsecamente a si mesmos por meio de argumento circular, cada um reivindica não somente o monopólio da verdade, mas também o monopólio das fontes ou critérios de verdade. O seguinte simples recurso: ‘capturar as fontes de onde jorra a verdade e fazer perecer à míngua todos os rivais’ é certamente sua característica principal, como ideologias. Uma praga em suas casas, mas temos ainda de enfrentar o problema de encontrar uma casa alternativa para nela viver. Sua identificação e justificação parecem levantar o problema insolúvel de superar o regresso: quem garante os garantidores? Formalmente o problema é insolúvel. Contudo, sendo um problema prático e inescapável - pois as normas tradicionais perderam toda sua autoridade - não temos outra saída senão ficarmos com a melhor solução disponível, quer ela satisfaça ou não os mais estritos critérios formais”. (Ernest Gellner. Legitimation of belief, Londres, Cambridge University Press, 1979, p. 204)



Introdução


O objetivo deste texto é apresentar uma forma de resolver a questão sobre a possibilidade de sermos objetivos quando conhecemos o mundo.


Parece razoável afirmar que grande parte dos filósofos tem procurado resolver essa questão na análise das condições subjetivas do conhecimento. No intuito de tornar mais clara essa posição, será aqui apresentada, na primeira parte, um esboço da forma como o conhecimento humano foi tratado no pensamento de alguns filósofos. Da forma como as epistemologias de Descartes, Kant, Husserl e Merleau-Ponty são apresentadas aqui, elas se caracterizam como epistemologias subjetivistas, isto é, procuram descobrir as condições de objetividade do conhecimento na análise da estrutura psicológica do sujeito cognoscente. Por essa razão, não conseguem superar certos condicionantes empíricos, pessoais e aperceptivos do sujeito cognoscente, sendo, portanto, obrigadas a concluir pela impossibilidade do conhecimento objetivo.

O sujeito cognoscente pode ser considerado como dotado de três caracteres que, de alguma forma, são obstáculos à objetividade do conhecimento humano. Por essa razão, devem ter suas conseqüências conhecidas e controladas. Contudo, não podem ser eliminados, sob pena de se desconsiderar os próprios caracteres constitutivos do sujeito cognoscente. Por "aspecto empírico" designa-se, aqui, a característica do sujeito cognoscente pela qual podemos reconhecer o conhecimento humano como dependente de fatores inerentes à estrutura do sujeito cognoscente. No conhecimento humano, intervêm fatores importantes que, no entanto, por si mesmos, são alheios ao conhecimento, são independentes, são anteriores ao próprio ato de conhecer, constituindo os autênticos caracterizadores da condição humana. Por exemplo, o fato de o sujeito cognoscente ser um corpo, de ser um corpo entre os corpos. Ainda o fato de ser um ser vivo, que age em função de certa utilidade; o fato de ser um sujeito psicológico, dotado de um mundo interior com uma estrutura mental própria; e, ainda, o fato de estar inserido num mundo cultural que o dota de uma cosmovisão que torna o mundo, de certa forma, familiar ao ser humano.

Por "aspecto pessoal", entendemos a característica do sujeito cognoscente que o faz reagir de modo pessoal às situações. O conhecimento é uma atividade do ser humano e, portanto, supõe certa iniciativa do sujeito, e essa iniciativa é livre. O conhecimento humano tem caráter de invenção, de originalidade. O conhecimento manifesta o sujeito pessoal, que determina a maneira pela qual procede às investigações. O sujeito cognoscente decide pelo modo e o fim da indagação.

O "aspecto aperceptivo" do sujeito cognoscente é aquele que decorre do fato de o sujeito cognoscente não estar encerrado em si mesmo até o ponto de viver um mundo exclusivamente seu. É situado, pessoal, não-solipsista. O conhecimento tem a pretensão de ser desligado de todo ponto de vista subjetivo. Todo sujeito cognoscente pretende colocar-se na posição de espectador imparcial e, ao afirmar algo, fazê-lo de tal forma que as propostas transcendam qualquer posição pessoal.

Este texto está dividido em duas partes. Na primeira, pretende-se analisar exemplos daquilo que poderia ser chamado de epistemologia subjetivista. Na segunda parte, procuramos reconstruir os principais fundamentos da epistemologia de Karl Popper, destacando que ela expressa a intenção de objetividade e originalidade.


1.


As teorias epistemológicas podem ser diferenciadas naquilo que consideram como o objeto no qual devem ser buscadas as condições do conhecimento objetivo. Algumas epistemologias colocam a base do conhecimento sobre a intuição do eu, isto é, restringem o conhecimento ao sujeito cognoscente e seus estados sensíveis, afetivos e volitivos e consideram que a realidade externa deve ser inferida dos estados mentais subjetivos. Essas epistemologias são, aqui, consideradas subjetivistas.

Outras teorias epistemológicas colocam o fundamento do conhecimento na realidade exterior, ou na objetividade da matéria, e implicam a tese de que tudo o que é conhecido é independente do sujeito cognoscente. Dessa forma, procuram encontrar as condições do conhecimento objetivo na análise das condições metodológicas ou exteriores ao sujeito cognoscente. De forma geral, essa posição, que pode ser chamada de objetivista, implica a idéia de que as experiências sensíveis desempenham uma importante tarefa no conhecimento direto e confíável do mundo real.(1)


2.


O primeiro filósofo a ser considerado é R. Descartes. No pensamento de Descartes, três idéias são importantes, para caracterizar o aspecto subjetivista de sua epistemologia: "a dúvida", "o cogito" e "a evidência". Por meio dessas três idéias, Descartes propõe uma forma de entender o conhecimento humano com a qual pretende transcender tudo o que chamamos de subjetivo no sujeito cognoscente. A epistemologia cartesiana é interpretada aqui como resultante de um esforço para superar os caracteres "empírico, pessoal e aperceptivo" do sujeito cognoscente.

Na primeira parte do Discurso do método, na qual encontramos a caracterização geral do problema do conhecimento científico, Descartes afirma que o bom senso é naturalmente igual em todos os seres humanos(2), porém, nem todos o usam da mesma forma.

Portanto, se as divergências entre os seres humanos provêm dos usos diversos que fazemos da própria razão, surge a necessidade de um método que faça com que apliquemos o bom senso corretamente.

Descartes afirma que foi levado a essa consideração pela análise da sabedoria de seus mestres e também pelo modo conclusivo e seguro com que lhe foi apresentada a ciência.

Decepcionando-se com a leitura do livro da natureza, pois via tantas opiniões quantas eram as cabeças, resolveu, então, retirar-se para si mesmo. Ele afirma:“Mas, depois que empreguei alguns anos em estudar assim no livro do mundo, e em procurar adquirir alguma experiência, tomei um dia a resolução de estudar também a mim próprio e de empregar todas as forças de meu espírito na escolha dos caminhos que devia seguir. O que me deu muito mais resultado, parece-me, do que se jamais tivesse me afastado de meu país e de meus livros”.(3)

Voltando-se sobre si próprio, Descartes percebe que a análise das idéias que já possuía poderia levá-lo a descobrir um critério para a identificação da verdade. Era preciso descobrir se entre as idéias possuídas existia alguma verdadeira e, tal ocorrendo, identificar suas características. Coloca-se, assim, o problema da busca de um método capaz de conduzir a uma verdade primeira. Descartes propõe-se a dúvida metódica, porque por meio dela seria possível analisar as idéias e perceber se entre elas havia um ponto de partida. Dessa forma, a dúvida impõe-se na epistemologia cartesiana como uma atitude necessária.

Duvidar para Descartes, consiste em considerar como falso tudo aquilo em que podemos achar a mais ínfima parcela de incerteza.(4)

Os objetos da dúvida podem ser identificados como sendo(5) os sentidos externos, os raciocínios (ou demonstrações) e tudo aquilo que temos no espírito e que pode levar-nos à incerteza de nossas aquisições anteriores.(6)

Alegando que para examinar a verdade é necessário por todas as coisas em dúvida, Descartes afirma:”Como fomos crianças antes de sermos homens, e ora julgamos bem ou mal das coisas que se nos apresentaram aos sentidos, quando ainda não tínhamos inteiro uso da razão, vários juízos de tal maneira nos tornaram confiantes, que não há sinal aparente de que deles nos possamos libertar se não tomarmos a iniciativa de duvidar, uma vez na vida, de todas as coisas em que encontrarmos a mínima suspeita de incertezas”.(7)

No momento em que penso que tudo é falso, eu penso, eu devo ser alguma coisa. Rejeito o testemunho dos sentidos, mas não rejeito o ato pelo qual rejeito tudo.(8) "Eu penso, logo sou" (cogito, ergo som - je pense, donc je suis), essa é a intuição inicial do eu existente e pessoal. Esse é o ponto de apoio do cartesianismo.(9)

A dúvida impõe-se irredutivelmente. Rejeito tudo, exceto o cogito. O "logo" (donc, ergo), porém, não quer indicar que se trata de uma inferência lógica, de forma que a existência seja uma decorrência do pensamento. Atinjo a um tempo o "eu cogitante" e o "eu existente". É uma intuição inicial que se refere, de um lado, à dúvida e, de outro, à existência do "eu pensante".(10)

O cogito é uma verdade primeira, pois todas as outras serão certas na medida em que estiverem relacionadas com esse ponto fundamental. O pensamento, a dúvida, constitui, portanto, a própria existência do ser humano. Essa é a primeira verdade.(11)

A partir dessa primeira verdade, toma-se possível a construção de um novo critério de validação do conhecimento humano, qual seja, a evidência. Analisando essa primeira verdade, Descartes encontra nela duas características: a clareza e a distinção.

Portanto, a partir daí, toma-se possível identificar, no conjunto de nossas idéias, quais as que apresentam os mesmos caracteres da verdade. Aquelas que forem claras e distintas como a idéia do "eu pensante" serão tão verdadeiras quanto ela.(12)

O cogito resiste a qualquer tentativa de dúvida, justamente porque é evidente, ou seja, é uma idéia clara e distinta.(13)

O critério da verdade fica, então, estabelecido: as idéias que puderem ser compreendidas clara e distintamente serão evidentes, do mesmo modo como é evidente a verdade primeira: “cogito, ergo sum”.(14)

Portanto, numa perspectiva cartesiana, o sujeito cognoscente, já que se pode supor a não existência do mundo e imaginá-lo como destituído de corpo, passa a ser compreendido como uma substância cuja natureza ou essência é pensar.


3.


Descartes relaciona, de forma indissociável, o cogito e o sum, o pensamento e a existência. Enquanto "penso", eu "sou". Consisto, essencialmente, em um ser que pensa. Quando deixo de pensar, não tenho nenhuma razão para crer que eu exista. Encontro-me em lugar nenhum, mas, pensando, "eu sou".

Nessa forma de análise, o sujeito cognoscente é uma alma e nada mais. Sou uma substância cuja essência é pensar. Segue-se então que, no ser humano, a alma é totalmente distinta do corpo. A alma é espiritual e não necessita de lugar algum para existir. O sujeito cognoscente dotado de caráter absoluto não é situado. O conhecimento humano, em Descartes, deve ser absoluto, porque, nada há nele que fundamente a hipoteticidade das idéias. Na epistemologia cartesiana, há uma ruptura entre a idéia e a coisa. Num primeiro momento, não existe garantia de que existam os objetos do pensamento fora do sujeito cognoscente. Contudo, não cabe duvidar da existência das idéias e do próprio sujeito que conhece.(15)

A hipótese do "gênio maligno", que poderia constituir uma dificuldade para a possibilidade da verdade, acaba se transformando num instrumento de construção da "dúvida hiperbólica", que é o próprio método da verdade cartesiana. Dessa forma, a hipótese do "Deus Enganador" é um artifício que permitirá sustentar a validade da dúvida como instrumento metodológico do conhecimento.(16)

Assim, a dúvida é reforçada pela ação do espírito enganador que atua no sentido de comprometer a possibilidade do ser humano atingir o verdadeiro conhecimento. Apesar disso, a verdade do “cogito, ergo sum” continua válida.

O "eu" de Descartes não tem sensações e percepções, mas tem idéias relativas à sensação e à percepção. A sensação e percepção são provisoriamente eliminadas.
Descartes diz:”Só nos restam os sentimentos, as afecções e os apetites de que podemos ter também um conhecimento claro e distinto, contanto que nos limitemos a incluir apenas nos juizos que deles fizermos o que conhecemos precisamente por meio do nosso entendimento, e de que nos tivermos certificado pela razao”.(17)

A consciência, para Descartes, é fechada em si mesma, contendo apenas idéias. Ela não tem como objeto o mundo exterior, mas somente os atos de percepção. Disso resulta que apenas conhecemos idéias.(18)

O sujeito cognoscente não percebe, não faz experiência. O mundo exterior existe apenas como uma idéia. Assim como o ponto, a reta e o plano são noções da geometria euclidiana, mas são seres apenas ideais, da mesma forma, o sujeito cognoscente, o Ser Perfeito, e o mundo externo são seres puramente ideais.

Para evitar o solipsismo, Descartes apela para uma saída de emergência: a evidência. A verdade do “cogito, ergo sum” decorre de sua evidência. A necessidade da existência de Deus decorre da clareza e distinção (evidência) da idéia de perfeição. O mundo exterior tem sua verdade inferida da veracidade do Ser Perfeito.

A epistemologia cartesiana apresenta-nos uma possibilidade de superação dos aspectos "empírico" e "pessoal" do sujeito cognoscente, contudo, não consegue solucionar o aspecto "aperceptivo". A idéia de consciência não ultrapassa o pântano do individualismo solipsista. O sujeito cognoscente é o "eu pensante", a alma, que pensa por ser distinto do corpo, desligado do tempo, afastado da situação e de pontos de vista, dotado de um caráter absoluto. Mas a garantia da validade do conhecimento, na epistemologia cartesiana, estaria na idéia do Ser Perfeito, pois é ela a garantia do critério de evidência. Isso porque Deus garante a veracidade das idéias claras e distintas. Por outro lado, a idéia de "perfeito" não foi criada pelo sujeito, mas, sendo inata, foi colocada nele por Aquele que só poderia ser o Ser Perfeito.

Da forma como Descartes caracteriza o sujeito cognoscente, este não consegue transcender os condicionantes que fazem dele um ser encerrado em si mesmo. Por meio de sua epistemologia, toma-se impossível a idéia de que o conhecimento humano independe da posição pessoal do sujeito que conhece. O conhecimento, dessa forma, não é algo imparcial e objetivo.


4.



Nesta parte, procurar-se-á considerar de perto a solução que Kant propõe na Crítica da razão pura.

Kant parece marcadamente impressionado com as contradições entre os filósofos, principalmente entre os metafísicos. Na matemática e nas outras formas de conhecimento racional, há diálogo e progresso. Na filosofia, contudo, só há contradições. Cada filósofo que se põe a pensar o faz repensando todos os problemas já refletidos pelos demais. Por essa razão, Kant procurou estabelecer uma base filosófica que fosse aceita por todos. Os filósofos falam muito sobre Deus, a alma e o mundo, mas a primeira coisa que deviam indagar é se o espírito humano pode possuir esses objetos de conhecimento, isto é, se é possível a metafísica. Kant propõe que se considere o problema de fazer metafísica como um projeto quimérico.

Kant diz:”Estes inevitáveis temas da Razão Pura são: Deus, a Liberdade, e a Imortalidade. A ciência cujo fim e procedimentos tendem propriamente para a resolução dessas questões se chama Metafísica. Sua marcha é, no começo, dogmática, isto é, ela empreende confiantemente seu trabalho sem ter provas da potência ou impotência de nossa razão para tão grande empreendimento. Parecia, sem dúvida, natural que ao abandonar o terreno da experiência, não se construísse imediatamente um edifício com conhecimentos adquiridos sem saber como, ou a partir da crença em princípios cuja origem ignoramos. E sem haver assegurado, antes de tudo, mediante cuidadosas investigações, da solidez de seus fundamentos. Ao menos, antes de começar a construí-lo, deveriam ser colocadas estas questões: Como pode a inteligência chegar aos conhecimentos a priori? Que extensão, legitimidade e valor podem eles ter?”(19)

O primeiro problema para Kant, então, é a crítica da razão pura: o conhecimento chama a si mesmo em seu próprio tribunal. Os metafísicos são convidados a deixar de lado, por um tempo, a metafísica, para poderem examinar se é possível "realmente se fazer metafísica". Kant formula a questão de saber se é possível essa disciplina racional que se chama metafísica. Na última parte de Crítica da razão pura, que se chama "Dialética transcendental", são tratados esses problemas. A "Dialética transcendental" é a discussão da razão consigo mesma, um choque de teses e antíteses em que a razão se constitui em tribunal e julga a sua própria possibilidade de fazer metafísica.

A problemática kantiana, até aqui esboçada, é fundamentalmente igual à primeira questão de Descartes. A base de sua epistemologia consiste em observar os elementos do conhecimento, em buscar identificar os componentes constitutivos da razão enquanto raciocina e em descobrir as condições dentro das quais se pode fazer metafísica.

O argumento de Kant em Crítica da razão pura é construido para chegar à conclusão de que jamais serão reunidas as condições necessárias para que o ser humano faça metafísica.(20)

Para Kant, a ciência descritiva experimental é possível, mas não a metafísica.

Na análise do sujeito cognoscente, Kant elimina todo o aspecto “empírico" e o aspecto "pessoal". A condição básica do conhecimento é o "eu transcendental", que não é uma substância, mas uma pura função do conhecimento. O "eu transcendental", para Kant, é uma unidade transcendental de conhecimento vazia em si mesma.(21)

Portanto, o "eu transcendental" impregna as coisas com a sua própria natureza. Ele aplica as formas "a priori" às coisas fomecidas pela sensibilidade, procedendo a uma universalização e unificação de caráter subjetivo.

Uma vez que, no domínio das ciências da natureza, temos, de um lado, um elemento que vem dos sentidos - os dados sensíveis - e, de outro lado, as categorias "a priori" do conhecimento, então, a ciência experimental é possível, porque os dados dos sentidos completam-se com os da razão.

Isso, porém, não acontece no domínio da metafísica, porque jamais os sentidos poderão fornecer elementos "a posteriori", capazes de se completarem com as formas "a priori" da razão. Por isso, jamais poderei afirmar que Deus existe ou não existe; se o universo ou se a alma realmente existem.(23)Para tanto, necessito de um sentido, que não possuo, capaz de me pôr em contato direto com esses objetos.
O sujeito cognoscente tende sempre a um saber uno, sintético, sobre Deus e o universo. E enquanto essas idéias de unidade e síntese exercem o papel de ideal, elas exercem um papel útil, válido, chamado por Kant de função reguladora.(24)


5.


Cada um de nós tende, de modo necessário, a conferir às idéias uma existência substancial. Entretanto, para que se diga que "Deus", o “eu" e o "mundo" existem substancialmente, seriam necesários sentidos que dessem “a posteriori” elementos para assim julgar. Logo, nenhuma idéia poderá ser assumida com certeza. Não podemos afirmar a existência substancial de "Deus", do "eu" e do "universo", pois não dispomos de elementos para isso. Mas, como não é possível, teoricamente, demonstrar a realidade dos objetos supra-sensíveis, pelo mesmo motivo, não é possível negá-la.

Podemos distinguir dois aspectos de realidade. Assim, temos a realidade fenomênica, presente em nossas intuições e que nós, por meio das formas "a priori", constituímos em mundo da experiência; e a realidade "numênica" ou simplesmente pensável, além da experiência, que constitui o mundo supra-sensível ou do incondicionado, inacessível à razão pura.(25)

O "eu", por definição, é destituído do aspecto "empírico", do sensível e, portanto, também o é de todo aspecto pessoal.

O fundamento de todo conhecimento, para Kant, encontra-se no "eu transcendental". O elemento nornativo no conhecimento não é o objeto, mas, sim, contrariamente àquilo que afirmam os escolásticos, o "eu transcedental", que projeta suas formas nos objetos.

O "eu" de Kant difere profundamente da consciência, pois é pura função do conhecimento. Não é puramente espiritual, mas precisa dos "a priori" do tempo e do espaço. A ciência é possível porque os sentidos dão os elementos capazes de preencher os dados da razão. A metafísica não é possível porque os sentidos não a atingem.

Mas nem por isso a metafísica deve ser abandonada, pois o ser humano não se reduz à atividade de conhecer, existem outras atividades que são manifestações da personalidade humana.(26)

Há, portanto, uma forma de atividade pela qual se pode penetrar o mundo da metafísica, este instrumento é a razão prática. Assim, os problemas da metafísica deslocam-se do âmbito da razão pura para o campo da razão prática, da gnoseologia para a moral. Só por meio da razão prática poderemos penetrar o mundo "numênico".

De todas essas considerações resulta que o conhecimento é fenomênico, que a experiência é o limite do conhecimento. Resulta ainda a impossibilidade da metafísica como conhecimento racional, que fica adstrito à fé moral.(27) A consciência humana, embora crítica, não pode ultrapassar a si mesma.28



6.



Em sua obra Meditações cartesianas, Husserl pretende reconstruir a Filosofia Verdadeira por meio de reflexões críticas. Ele tenta, como já haviam tentado Descartes e Kant, fazer uma filosofia válida para todos, fundada em verdades apodíticas, ou últimas.

O esforço de Husserl é bastante semelhante ao de Descartes. Procura uma filosofia fundada cientificamente, por meio do método verdadeiro. Afirma que, além do que é verdadeiro, é preciso encontrar o “ponto do qual tudo jorra".

Embora a problemática tratada por Husserl seja a mesma de Descartes, desde o princípio ele se afasta deste, aproximando-se mais de Kant. Assim, propõe, como Descartes, uma volta ao sujeito cognoscente. Deve-se procurar no sujeito cognoscente os próprios motivos para a filosofia.

É preciso ultrapassar as estruturas criadas pela cultura e, dessa forma, o fim para o qual deve tender todo o esforço crítico necessita ser orientado no sentido de atingir a experiência original das coisas.

O ponto de partida para a análise fenomenológica é o mundo dado, e seu método é a descrição do fenômeno, ou seja, do que é dado imediatamente ao sujeito. Por esse método, pretende-se atingir a realidade na forma em que se nos apresenta; busca-se captar o conteúdo eidético (“eidos” = forma).

A etapa inicial, para atingir a base primeira da realidade, consiste na “epokhé”, ou seja, suspender o juízo, não rejeitar como falso o que o sujeito cognoscente apreende do mundo.(29) Trata-se de assumir uma atitude de expectativa, na qual o sujeito espera que o objeto conhecido seja um fenômeno.

A primeira coisa que sabemos sobre um objeto é que ele está sendo apresentado a nós. Por outro lado, nada afirmo sobre a maneira de existência do objeto, pois suspendo meu juízo. A essência das coisas está contida nos dados, e ela é o objeto da investigação fenomenológica; para atingí-la, é necessário prescindir de todos o elementos que não interessam à investigação. Para captar a essência das coisas, é necessário que procedamos à chamada redução, ou seja, desbastemos o objeto de todos os dados que são conteúdos de consciência, mas que referem-se ao sujeito psicológico ou à existência individual. Assim, para captar o “eidos” (forma, essência) dos objetos, é necessário que nos libertemos de todos os elementos que se referem a nosso aspecto empírico. Na redução filosófica, procede-se como numa redução matemática, onde os dados são colocados sobre um denominador comum. Consiste, portanto, numa tentativa de desviar nossa atenção das teorias sobre as coisas, para fixá-la nas coisas mesmas.(30)

Husserl distingue diversos graus de redução. Assim temos: a) redução histórica, em que se faz abstração de todas as doutrinas filosóficas; b) redução eidética, em que se pratica a “epokhé” sobre a existência individual do objeto, fazendo abstração de todas as ciências da natureza e do espírito; c) redução transcendental (ou fenomenológica), que é característica do espírito que considera os fatos como puros fenômenos, e caracteriza-se pela exclusão de qualquer afirmação sobre a existência do mundo e de todos os dados da individualidade. Assim, coloca-se entre parênteses qualquer consideração sobre a existência da individualidade (como hábitos, crenças, subjetividade psicológica, coisas, e a existência do "eu empírico"). Essa redução nos coloca diante do único elemento irredutível: o "eu transcendental". Este constitui, portanto, o resíduo fenomenológico que não pode ser reduzido, que não pode sofrer suspen- sões ou ser colocado entre parênteses.

A redução eidética consiste na eliminação dos elementos empíricos do dado. A redução transcendental consiste em colocar entre parenteses as crenças existenciais.

7.


As considerações sobre o sujeito cognoscente elaboradas por Husserl levam-nos à conclusão de que Husserl não o encara como a “res cogitans” de Descartes (o "eu" é substância que pensa). Para Husserl, não podemos atribuir um valor substancial ao "eu". Assim, o "eu" é uma função do conhecimento. No que se refere a ser ele uma substância, devemos suspender o juízo. É na presença desse "eu" que tudo se desenrola. Ele não é uma entidade puramente espiritual. É, contudo, um espectador imparcial diante do qual o espetáculo continua. A tarefa fundamental do sujeito cognoscente consiste na descrição fenomenológica. O aspecto mais importante do conhecimento consite em descrever como o mundo se apresenta perante o "eu transcendental". Por outro lado, sobre se o mundo realmente existe, deve-se praticar a suspensão do juízo, nada afirmar, uma vez que nada é possível de ser proposto com validez.


8.


Merleau-Ponty dedica especial atenção aos caracteres empírico e pessoal do sujeito cognoscente. Contudo, conclui pela impossibilidade de se conhecer a verdade absoluta. O ser humano está preso ao relativismo absoluto.(31)

A perspectiva de Merleau-Ponty, ao colocar o problema do conhecimento, é completamente diferente daquela proposta por Descartes. Pertence à epistemologia cartesiana a afirmação de que não se pode ter certeza da percepção das coisas, mas apenas do pensamento sobre elas. Não posso ter certeza de que vejo uma mesa, mas apenas de que estou pensando nela.(32)

Merleau-Ponty aponta para a dissociação que existe, na proposta cartesiana, entre o ato de perceber os seres corpóreos e o, pensamento sobre eles.(33)

Para Descartes, existem o meu ato de pensar, a mesa e o ato de perceber a mesa. Merleau-Ponty afirma a impossibilidade de se dissociar os atos de pensar, perceber e a coisa percebida.(34)

Perceber é perceber alguma coisa. É impossível separar essas coisas: o ato e o termo ao qual se refere.(35)

A percepção e o percebido devem ter a mesma "modalidade existencial".(36) Não se pode separar a percepção da consciência que ela é de atingir a própria coisa.(37)

Para que a percepção seja plenamente identificada, a fim de saber de que se trata, ela deve ser autêntica. Para que se torne clara, e para que possamos distinguir entre ela e o sonho, é necessario que seja comparada com uma percepção autêntica anterior. M. Ponty diz:” Perceber não é sentir uma multidão de impressões que conduziriam com elas lembranças capazes de completá-las; é ver surgir de uma constelação de dados um sentimento imanente sem o qual nenhuma chamada às lembranças seria possível. Lembrar-se não é trazer sob o olhar da consciência um quadro do passado subsistente em si, é entranhar-se no horizonte do passado e desenvolver pouco a pouco as suas perspectivas encaixadas até que as experiências que ele resume sejam como vividas de novo em seu lugar temporal. Perceber não é se lembrar”.(38)

É essencial à percepção que se refira a um ser perceptível e atual. Se qualquer dúvida for lançada sobre a coisa percebida, lança-se dúvida sobre o próprio ato de percepção.(39)

A consciência de perceber não consiste em notar passivamente um fato que existe. A consciência refere-se ao próprio ato de percepção. A consciência de perceber não é notação passiva de um ato psíquico que deixa dúvidas sobre a coisa percebida.

A redução das coisas ao "ato de perceber as coisas" é impossível e impraticável, visto que o objeto percebido e a percepção têm a mesma "modalidade existencial".

Duvidar das coisas é, portanto, duvidar dos próprios atos de percepção. As coisas e as percepções estão intimamente ligadas. Posso, contudo, reduzir os atos de percepção aos pensamentos relativos à percepção.(40)

Assim, a possibilidade de uma certeza não passa de uma possibilidade de certeza.

Para M.Ponty, pode-se considerar os seres sob vários perfis. Para conhecer todos os seres, seria necessário ter um número incontável de perfis. Isso é impossível. Portanto, o conhecimento verdadeiro, no sen- tido de completo, exigiria uma síntese de incontáveis perfis.

O sujeito cognoscente não pode deixar de ser situado e, portanto, engajado. Merleau-Ponty diz:”De fato, o Ego meditante não pode nunca suprimir sua inferência a um sujeito individual, que conhece todas as coisas numa perspectiva particular”.(41)

Somos seres situados, cujos pensamentos são essencialmente marcados pela temporalidade. O sujeito cognoscente acha-se engajado em uma situação e dela não pode se desligar.(42)

Todos possuem seus pontos de vista pessoais, intransferíveis e situados, do que decorre que a verdade de um não é a verdade de outro. Os problemas são abordados conforme a situação do sujeito cognoscente. Este se engaja a partir de suas "verdades".(43)

Não são conhecidas verdades válidas universais, porque o sujeito cognoscente não pode desprender-se de sua situação.(44)

Conhecemos apenas certo número de perfis das coisas. Não se pode atingir verdades absolutamente seguras. Ainda que o sujeito cognoscente seja tomado individualmente, mesmo assim, os perfis por ele atingidos são sempre limitados. E com ele se encontram situados, mas em evolução, assim, as verdades de ontem não serão as verdades de amanhã. As coisas podem ser fixas, mas os perfis que percebemos delas são variáveis. Enfim, o sujeito existe engajado, situado no mundo e, por mais bem informado que esteja, nunca poderá estar totalmente informado sobre os seres.

A "teoria dos perfis", de Merleau-Ponty, aplica-se a todo o domínio do conhecimento. Nossos erros consistem em decisões tomadas com base em certos perfis insuficientes. Da epistemologia de Merleau-Ponty decorre que o sujeito encontra-se sempre num ponto de vista engajado e finito, entretanto, posiciona-se como se dispusesse de todos os pontos de vista. Quando refletimos, não é possível dissociar o mundo da percepção de nossa condição de seres encarnados. Para descrever o pensamento, como faz Descartes, seria necessário que o sujeito cognoscente se situasse fora do mundo. Não há pensamento espiritual, o pensamento humano é sempre pensamento encarnado. O próprio problema do cogito cartesiano só tem sentido hoje retomado por mim. Dessa forma, o cogito deixa de ser um problema de Descartes, para ser um problema meu, retomado hoje por mim. A verdade absoluta não está ao nosso alcance, já que nunca poderemos conhecer todos os perfis ao mesmo tempo. Podemos conhecer apenas verdades presuntivas, relativas, mas nunca absolutas.


9.


O grande problema da epistemologia de Merleau-Ponty está no fato de que, embora acentuando os aspectos empírico e pessoal do sujeito cognoscente, acaba por negar o seu aspecto aperceptivo. Há, de certa forma, um divórcio entre a atitude do autor, ao escrever suas teorias e a atitude descrita pelo autor. Quando propõe suas teorias, ele o faz de forma a pressupor que serão válidas no futuro, que serão aceitas por outros. Por outro lado, defende uma idéia de sujeito cognoscente que não evita o relativismo decorrente da negação de seu aspecto aperceptivo.


10.


Após analisarmos a forma como alguns filósofos têm tratado o problema do sujeito cognoscente, passemos às considerações em torno das propostas de Karl R. Popper. Para ele, o grande erro das epistemologias anteriormente analisadas é que insistem em afirmar que os problemas epistemológicos devem ser discutidos por meio da análise de aspectos subjetivos do sujeito cognoscente. Todas as soluções apresentadas pelas epistemologias subjetivistas esgotam-se na consideração do processo psicológico do sujeito cognoscente. Não tomam o conhecimento como algo dotado de existência propria, submetido a suas proprias condições de evolução. Assim, as epistemologias subjetivistas, que procuramos exemplificar neste capítulo, com as teorias de Renê Descartes, Emmanuel Kant, Edmond Husserl e Maurice Merleau-Ponty, perdem-se nas discussões sobre os aspectos empírico, pessoal e aperceptivo do sujeito cognoscente. Elas não conseguem apontar uma fórmula definitiva para superar as barreiras para um conhecimento objetivo. Nesses filósofos, a epistemologia não consegue ultrapassar a instância do sujeito que conhece.

Popper pretende propor novas bases para a discussão dos temas epistemológicos. Ele acredita que a epistemologia objetivista só é possível se for considerada a separação entre sujeito cognoscente e conhecimento. Sua tese principal sugere que existe um mundo próprio (mundo 3) para nossas teorias e pressuposições, e é sobre ele que devem convergir nossos esforços no sentido de entender o processo do conhecimento humano.

A epistemologia popperiana se constrói com base no pressuposto de que pouco se consegue quando se tenta estudar o problema epistemológico sob um ponto de vista psicológico. Podemos distinguir dois sentidos diferentes para a palavra conhecimento ou pensamento. Assim, conhecimento, num sentido subjetivo, indica um estado de espírito, de consciência ou de disposição para reagir. Num sentido objetivo, o conhecimento indica o conjunto de problemas, teorias e argumentos produzidos pelo sujeito cognoscente.(45) É nesse sentido objetivo que deverá ser tomado o conhecimento para que se produza uma análise epistemológica conclusiva. Essa forma de interpretar o conhecimento desconsidera as implicações psicológicas e subjetivistas do ato de pensar. Popper propõe que se considere o pensamento como algo objetivo, não envolvendo o sujeito conhecedor. Existe, portanto, um sentido objetivo para o conhecimento humano que torna a análise epistemológica destituída de considerações sobre o sujeito que conhece.


11.


A tese fundamental da epistemologia objetivista aqui reconstruída pode ser identificada na seguinte passagem: ”A epistemologia tradicional tem estudado o conhecimento ou o pensamento num sentido subjetivo - no sentido comum das expressões "sei" ou "estou pensando". Isto, afirmo, tem levado estudiosos de epistemologia a irrelevâncias: enquanto pretendiam estudar o conhecimento científico, estudavam de fato algo que não tem significação para o conhecimento científico. Pois o conhecimento científico simplesmente não é conhecimento no sentido do uso comum da palavra "sei". Enquanto o conhecimento no sentido de "sei" pertence ao que chamo "segundo mundo", o mundo de sujeitos, o conhecimento científico pertence ao terceiro mundo, ao mundo de teorias objetivas, problemas objetivos e argumentos objetivos”.(46)

Nessa tese, Popper critica a epistemologia tradicional, apontando para o caráter irrelevante de suas conclusões, na medida em que se afastam de seu real objeto, isto é, em vez de estudarem o conhecimento científico e suas implicações, perdem-se em questões inconclusivas sobre aspectos psicológicos dos problemas epistemológicos.

Nesse sentido, o conhecimento científico é uma realidade pertencente ao "terceiro mundo", isto é, o mundo objetivo dos "conteúdos lógicos".


12.


Popper propõe que se considere a existência de três mundos que formam uma estrutura piramidal, dentro da qual se processa o fenômeno do conhecimento humano. Assim, temos o mundo das estruturas reais (mundo 1), o mundo das estruturas mentais (mundo 2) e o mundo das estruturas abstratas (mundo 3).

Segundo essa tese, podemos distinguir o mundo de objetos físicos e de estados materiais (mundo 1); o mundo de nossas experiências conscientes, que constitui a realidade subjetiva de nossas mentes (mundo 2); e o mundo dos conteúdos lógicos de livros, bibliotecas, memórias de computadores e similares.(47) Este último constitui um mundo de estruturas objetivas que são o produto da ação de criaturas vivas e que, uma vez criadas, existem independentemente dos sujeitos criadores, sendo, portanto, dotadas de existência própria.(48) Esse é o mundo dos conteúdos objetivos do pensamento científico, filosófico, poético e, ainda, das obras de arte (mundo 3). Esse terceiro mundo se concretiza em sistemas teóricos contidos em livros, revistas, bibliotecas, que contêm problemas e situações de problemas, bem como o estado da discussão dos problemas. Esse mundo 3 é, portanto, povoado por idéias, arte, ciência, ética, linguagem, instituições. Assim, existe todo um aparato do mundo 1 que é sustentação material do mundo 3.

Há uma interessante passagem de Bryan Magee que analisa a analogia existente entre as realizações do homem e as do animal, e procura evidenciar o significado da tese do mundo 3. Ele diz:”Precursores disto, no mundo animal, são as casas construídas por pássaros, formigas ou vespas, colméias, teias de aranhas ou diques de castores, - todas elas estruturas altamente complicadas, e edificadas pelo animal fora de seu próprio corpo, com o fito de resolver seus problemas. As próprias estruturas se transformam no centro do meio-ambiente do animal, para o qual se orienta a parte mais importante de seu comportamento. Em verdade, o animal, muitas vezes, nasce em uma de tais estruturas e elas constituem sua primeira experiência do ambiente físico, no momento em que deixa o corpo materno. Acresça-se que em alguns casos as estruturas são abstratas: formas de organização social, por exemplo, ou padrões de comunicação. No caso do homem, certos traços característicos se desenvolveram para que fosse possível enfrentar o meio ambiente e acabaram por introduzir modificações espetaculares nesse mesmo ambiente. A mão do homem é apenas um dos muitos exemplos a ser lembrado. E as estruturas abstratas criadas pelo homem - a linguagem, a ética, a religião, a filosofia, as ciências, as artes, as instituições - sempre rivalizaram, em escopo e grau de elaboração, com as transformações que ele impôs ao ambiente físico. Tal como acontece com as criações de outros animais (mas em escala ainda maior), as criações humanas adquiriram importância nuclear no ambiente ao qual ele precisou, em seguida, ajustar-se modelando-o, por assim dizer. A existência objetiva de tais criações significava que o homem tinha condições de examiná-las, avaliá-las e criticá-las, ampliá-las, revê-las ou reformá-las e até de efetuar, com seu auxílio, descobertas inteiramente inesperadas”.(49)

13.


O terceiro mundo tem duas características fundamentais: a objetividade e a autonomia. A objetividade, em Popper, tem dois sentidos. De um lado, significa que existe um mundo real e é a ele que chega o conhecimento científico.(50)

Para Popper, a afirmação que o mundo existe não é uma teoria demonstrável, mas não é, também, uma teoria refutável. O realismo se expressa em teorias filosóficas ou metafísicas. O realismo, juntamente com o idealismo, que é a tese justamente oposta, de que o mundo é um dos meus sonhos, é indemonstrável. Porém, o realismo é preferível, principalmente por ser parte do senso comum. Assim, ”O idealismo é, portanto, irrefutável; e isto quer dizer, sem dúvida, que o realismo é indemonstrável. Mas estou disposto a aceitar que o realismo não só é indemonstrável, mas também, como o idealismo, irrefutável; que nenhum acontecimento descritivo e nenhuma experiência concebível podem ser tomados como refutações efetivas do realismo. Assim, nesta questão, como em tantas outras, não haverá argumento conclusivo. Mas há argumentos em favor do realismo; ou, antes, contra o idealismo.(51)

Mas a palavra objetividade tem outro sentido ainda no pensamento popperiano. Significa que o conhecimento é distinto do sujeito cognoscente, e esse conhecimento tem uma realidade objetiva entre as outras coisas do universo.

Nesse sentido, temos um curioso exemplo dado por Popper e no qual se pretende destacar a objetividade (independência) do mundo 3. Suponhamos duas situações especiais: primeiramente, consideremos que, por efeito de um cataclisma qualquer, ocorra a destruição de todas as nossas máquinas e equipamentos. Assim, desapareceriam as fábricas, as usinas, todos os nossos recursos tecnológicos. Suponhamos, ainda, que, como efeito de tal incidente, resulte a destruição de todo aprendizado de homens e mulheres, inclusive o conhecimento destes em relação ao funcionamento e manuseio das máquinas e equipamentos. O ser humano teria, dessa forma, regredido a uma situação que imaginamos seja a correspondente à fase inicial da civilização. Suponhamos, porém, que tenham sobrevivido ao episódio destruidor apenas as bibliotecas e a capacidade de homens e mulheres de aprenderem com elas. Sem dúvida, depois de muito sofrimento e esforço, novamente a civilização poderá ser retomada, e poderá seguir avante a partir do ponto onde foi interrompida.

Imaginemos, agora, uma nova situação absolutamente idêntica à anterior, exceto em um ponto. Assim, as máquinas e equipamentos são destruidos, todo aprendizado individual desaparece. Porém, desta feita, as bibliotecas, com seus milhares de livros, também são destruídas, restando apenas a capacidade do ser humano de aprender com elas. O que ocorrerá, então, será que essa capacidade ficará ociosa, já que seu objeto não existe. Assim, homens e mulheres permanecerão por muito tempo numa situação em que não poderão prosseguir com a civilização no ponto em que a catástrofe a interrompeu.(52) O que se pretende demonstrar com tal exemplo é que existe independência do mundo 3 em relação aos demais. Isso significa que, conforme se conclui do primeiro episódio, é possível destruir o mundo 1, constituído de máquinas e equipamentos, o mundo 2, expresso no conhecimento subjetivo do ser humano, sem contudo destruir o mundo 3, que permanece expresso nas bibliotecas e na capacidade do ser humano de aprender com elas.

Observamos, no segundo episódio, que, com a destruição de bibliotecas e, portanto, de objetos, estaremos eliminando seres do mundo 3. E que, sem dúvida alguma, há algo que se perdeu com a sua destruição, pois o ser humano não é capaz de retomar a civilização no ponto em que esta foi interrompida. Existem, portanto, objetos reais que constituem personagens do mundo 3.

Ao analisarmos a questão de um ponto de vista lógico, poderemos distinguir três aspectos diversos em nossos enunciados. Assim, temos um enunciado que pertence ao mundo das coisas físicas; por exemplo, o seguinte enunciado: "Há um interessante quadro na parede". Ele é real no sentido de que ocupa um lugar no espaço físico desta folha. Como tal, pertence ao mundo 1. Esse mesmo enunciado pode ainda ser considerado expressivo de um estado subjetivo ou expressivo de uma experiência subjetiva. Um enunciado, dessa forma, pode ser tomado como sintomático de um fenômeno interior ao sujeito cognoscente. A frase "há um interessante quadro na parede" expressa o esforço de conhecer e pode expressar o processo mental do indivíduo que pensa. Como tal, pertence ao mundo 2. Um enunciado pode ainda ser considerado como um enunciado em si mesmo, isto é, há um conteúdo apreendido, um objeto que está sendo pensado. Assim, na proposição "há um interessante quadro na parede", podemos considerá-la como uma coisa que existe no mundo real (mundo 1), como expressão de um processo subjetivo (mundo 2), e como resultado do ato de pensar (mundo 3). Essa proposição, enquanto pertence ao mundo 3, tem um conteúdo objetivo, isto é, ela expressa uma teoria, um problema, ou um argumento crítico.

Popper afirma:”O ponto decisivo é, ao que julgo, o de podermos colocar à nossa frente pensamentos objetivos - isto é, teorias - de maneira tal que tenhamos como crititicá-los e discutí-los. Para tanto, impõe-se que lhes demos uma forma (especialmente lingüística) mais ou menos permanente. A forma escrita será preferível à oral; e melhor ainda será a forma impressa. É significativo que possamos distinguir entre a crítica da mera formulação de um pensamento - um pensamento pode ser bem ou menos bem formulado - e os aspectos lógicos do pensamento em si mesmo; sua verdade ou sua verossimilhança diante de alguns de seus competidores; ou sua compatibilidade com certas outras teorias. Uma vez chegado a esta altura, achei que ainda tinha de povoar meu mundo 3 com habitantes outros que não os enuciados; e, a par dos enunciados ou teorias, coloquei nele problemas e argumentos, em particular argumentos críticos. Com efeito, as teorias devem ser sempre discutidas sem que se percam de vista os problemas que elas possam resolver. Os livros, revistas e cartas podem ser vistos como objetos típicos do mundo 3, especialmente quando neles se desenvolve e se discute uma teoria. Naturalmente, a forma física do livro não tem importância e nem mesmo a não-existência física impede a existência do mundo 3: pensemos em todos os livros "perdidos", na influência que exercem e na busca de que são alvo”.(53)


14.


O mundo 3 de Popper existe e é povoado por seres independentes e reais. A realidade dos objetos do mundo 3 é aqui entendida no sentido mais comum do termo. Certamente que, causa estranheza afirmar que as teorias e os argumentos são tão reais quanto cadeiras, pedras, mesas e laranjas. Contudo, temos dificuldade em entender como reais objetos, como gases e correntes elétricas. Assim como é problemático considerar como reais as imagens na televisão, que são o resultado da decodificação de complexas e abstratas mensagens transmitidas por ondas. Dessa forma, se nos comprometermos a entender como reais as coisas capazes de agir sobre coisas físicas, e sobre as quais se possa agir como coisas físicas, então poderemos afirmar que nossas teorias são reais, pois o mundo físico pode ser alterado por nossas teorias, assim como nossas teorias podem ser alteradas pelo mundo físico.(54)

Nossas teorias, contidas em livros e outros instrumentos, transportam um conteúdo informativo, uma mensagem que poderá resultar numa modificação da realidade. Contudo, embora o mundo físico (mundo 1) possa interagir com o mundo de nossas mentes (mundo 2), e o mundo de nossas teorias (mundo 3) possa interagir com o mundo de nossas mentes (mundo 2), o mundo físico (mundo 1) e o mundo de nossas teorias (mundo 3) não podem interagir diretamente. Isso só é possível com a mediação do mundo 2. Teríamos, então, o seguinte esquema da interrelação dos mundos: Mundo 1 <-> Mundo 2 <-> Mundo 3.

Assim, o mundo das coisas físicas interage com o mundo das mentes, o mundo das mentes interage com o mundo das teorias. Porém, o mundo físico só interage com o mundo das teorias por meio do mundo das mentes. Para ilustrar tal idéia, Popper usa o seguinte exemplo:”Com efeito, a "incorporação" de uma teoria a um livro - e, portanto, a um objeto físico - é exemplo disso. Para ser lido, o livro requer a intervenção de uma mente humana, do mundo 2. Mas requer, também, a própria teoria. Posso, por exemplo, incidir em erro: minha mente pode deixar de entender corretamente a teoria. Contudo, a teoria em si mesma sempre permanece e alguma outra pessoa poderá entendê-la e corrigir-me. Pode facilmente não ser um caso de diferença de opiniões, mas de erro indisfarçável e real - uma falha no compreender a teoria. E isso poderá acontecer até mesmo com o elaborador da teoria. (Aconteceu mais de uma vez com Einstein.)”(55)

Dessas considerações podemos concluir que o mundo 2 exerce uma função mediadora entre os mundos 1 e 3.


15.



O problema do relacionamento corpo-mente foi tratado de forma extensiva nos últimos trabalhos escritos por Popper. Em um livro publicado em 1977, intitulado “The self and its brain”, Popper debate com John Eccles as implicações de suas posições. A idéia de Popper sobre o caráter mediador do mundo 2 conduz-nos ao problema do relacionamento corpo-espírito. O problema pode ser formulado com a seguinte questão: "Como compreender racionalmente a relação entre nossos corpos (ou estados fisiológicos) e nossas mentes (ou estados mentais)?"

A posição de Popper sobre essa questão pode ser considerada como dualista e interacionista. Ele argumenta a favor da posição de que existe distinção e relacionamento entre comportamento e intenção, isto é, que não se pode reduzir o ser humano a comportamentos observáveis. Popper afirma:“Sugiro que olhemos antes o espírito humano, primeiro que tudo, como um órgão que produz objetos do humano mundo 3 (no sentido mais geral) e que eles interagem. Proponho, assim, que consideremos o espírito humano essencialmente como o produtor da linguagem humana, para a qual nossas aptidões básicas (tal como foi explicado anteriormente) são inatas; e como produtor de teorias, de argumentos críticos e de muitas outras coisas, tais como erros, mitos, relatos, anedotas, ferramentas e obras de arte.”(56)

Assim, as funções superiores da linguagem, quais sejam, as funções descritiva e argumentativa, não podem ser entendidas como reações mecânicas a estímulos exteriores. Assim, o fenômeno da linguagem pode nos levar a conclusões interessantes sobre o problema da relação entre corpo e espírito. Podemos, portanto, falar claramente na existência de uma base dualista no ser humano. Semelhante ao dualismo cartesiano, esse dualismo implica na existência de corpo e espírito, mas, diversamente de Descartes - que fala em substâncias diferentes – aqui se entende serem estados ou processos em interação. Enquanto Descartes conjectura sobre a existência de uma glândula pineal como órgão físico da consciência, aqui se sugere que o cérebro pode sediar o controle plástico dos movimentos do corpo. De qualquer forma, conclui-se pela possibilidade de interação entre corpo e espírito. E dessa interação resultam os objetos do mundo 3. Dessa estreita ligação entre corpo e espírito é que nascem os seres do mundo 3, a consciência de si próprios e a possibilidade de interação entre nossas teorias e nossa consciência. Esse inter-relacionamento implica em modificações recíprocas. Modificamos nossas teorias, somos modificados por elas.(57)


16.


Aqui se propõe a tese de que sua teoria do mundo 3 pode contribuir para a compreensão do espírito humano. O ponto central que aqui se pretende afirmar é que a existência e o caráter do mundo 3 permitem uma melhor compreensão do espírito humano do que as teses que decorrem das epistemologias subjetivistas. Popper defende a idéia de que é estudando os objetos do mundo 3 que se poderá compreender melhor o espírito humano. Com efeito, da mesma forma que as capacidades psíquicas dos animais são estudadas e seus componentes psicológicos são identificados ao analisar-se a estrutura dos objetos que esses animais produzem, é também no estudo dos objetos do mundo 3 que se poderá compreender melhor a realidade mental ou espiritual do ser humano.

Popper sugere que podemos compreender melhor um animal com base no estudo de seus artefatos. Sabemos mais sobre as estruturas psicológicas dos pássaros com base no estudo do método de construção de seus ninhos; conhecemos melhor as abelhas estudando suas colméias. Disso se segue que poderemos compreender melhor o espírito humano estudando aquilo em que resultam as suas manifestações. O argumento de Popper sugere que, para estudar o fenômeno da "compreensão" que temos de um fato teórico qualquer, devemos nos voltar para os objetos - e suas relações - nos quais essa “compreensão" se concretiza. Assim, esse fenômeno seria melhor estudado na análise do problema que uma teoria qualquer pretende resolver, na forma como esse problema se relaciona com a ciência, na identifica- ção das demais hipóteses que estão sendo propostas etc. Enfim, estudar as teorias, as conjecturas, os argumentos que estão relacionados com a "compreensão" de alguma questão. Por esse caminho, poderíamos ter mais sucesso no estudo do fenômeno do espírito humano. O estudo das teorias e argumentos poderia nos levar a significativas conquistas na psicologia. É no estudo dos objetos do mundo 3 que poderemos encontrar novas sugestões sobre o caráter da realidade interior do ser humano.


17.


Ao argumentar em favor da tese de que o mundo 3 é objetivo, Popper desenvolve uma interessante análise dos livros, como exemplos de objetos culturais produzidos pelo ser humano, dotados de vida e de significados próprios. Os livros costumam ser, na nossa cultura, os instrumentos mais divulgados de registro de nossas teorias e argumentações. Nossas idéias, nossos mitos e, especialmente, nossas teorias científicas são os artefatos tipicamente humanos, produzidos de forma análoga àquela como os animais constroem os seus ninhos e colméias. Assim como um ninho é um ninho independentemente do fato de não haver, hoje, um pássaro nele, ou até mesmo de ter sido feito por um pássaro. Assim também, um livro é um livro, independentemente de existir para ele algum leitor, neste exato momento, bem como, poder ter sido feito por um outro agente imediato que não o ser humano. Por exemplo, um livro feito por um computador, um livro sobre logarítmos. Ele pode ser elaborado e ficar durante vários anos sem que qualquer pessoa se disponha a utilizá-lo. Contudo, não deixará de ser um livro, pois conterá um certo tipo de conhecimento que existe ali, inde- pendentemente de quem o produziu ou de quem se disporá a lê-lo. Ele possui um caráter que permite que venha a ser entendido e interpretado; e isso faz dele um livro. Portanto, a tese popperiana da objetividade do conhecimento, implica a idéia da objetividade da cultura. O que tudo isso parece sugerir é que o mundo da cultura é constituído por objetos de alguma forma independentes de homens e mulheres, nas relações que, uma vez existentes, mantêm entre si. Assim, “O exemplo desses livros de logarítmos pode parecer forçado. Mas não é. Eu diria que quase todo livro é assim: contém conhecimento objetivo, verdadeiro ou falso, útil ou inútil; e se alguém chegar a lê-lo e a aprender seu conteúdo, isso é quase acidental. Quem lê um livro com entendimento é uma criatura rara. Mas, mesmo se fosse um ser mais comum, sempre haveria uma multidão de incompreensões e más interpretações; e não é o ato efetivo e um tanto acidental de evitar essas incompreensões o que transforma riscos pretos num papel branco em um livro, ou num exemplo de conhecimento no sentido objetivo. Em vez disso, é algo mais abstrato. É a possibilidade ou potencialidade de ser entendido, seu caráter disposicional de ser compreendido ou interpretado, ou desentendido ou mal interpretado, que faz de uma coisa um livro. E essa potencialidade ou disposição pode existir sem jamais haver sido efetivada ou realizadas”.(58)

Outros exemplos poderiam ser apresentados, no intuito de esclarecer a teoria sobre a objetivade do mundo da cultura ou mundo 3. Em outra passagem Popper diz:’Anos atrás, ganhei um presente para meu jardim - uma caixa de ninhos para pássaros. Era um produto humano, sem dúvida, não um produto de pássaros - tal como nossa tábua de logarítimos era um produto de computador em vez de um produto humano. Mas, no contexto do mundo dos pássaros, era parte de uma situação de problema objetivo mais do que de uma oportunidade objetiva. Por alguns anos, os pássaros nem mesmo pareceram notar a caixa de ninho. Mas, após alguns anos, ela foi cuidadosamente inspecionada por algumas cotovias azuis, que começaram a aninhar-se nela, mas muito depressa a abandonaram. Obviamente, havia ali uma oportunidade aproveitável, ainda que não fosse, parece, particularmente valiosa. De qualquer modo, estava aí uma situação de problema. E o problema pode ser resolvido em outros anos por outros pássaros. Se não for, outra caixa pode mostrar-se mais adequada. Por outro lado, uma caixa mais adequada pode ser removida antes de ser usada qualquer vez. A questão da adequação da caixa é claramente objetiva; e ser a caixa usada alguma vez é parcialmente acidental. O mesmo se dá com todos os nichos ecológicos. São potencialidades e podem ser estudados como tais de modo objetivo, até um ponto independente da questão de serem essas potencialidades algum dia efetivadas por qualquer organismo vivo. Um bacteriólogo sabe como preparar tal nicho ecológico para o cultivo de certas bactérias ou bolores. Ele pode ser perfeitamente adequado a seu fim. Se alguma vez será usado ou habitado é outra questão”.(59)

A idéia de objetividade do mundo 3 pode ser entendida conjuntamente com a de sua autonomia. Popper oferece um exemplo ao dizer:”Como surge uma trilha de animal na selva? Algum animal pode romper entre as moitas, a fim de alcançar um lugar para beber. Outros animais acham mais fácil usar a mesma trilha. Assim, ela pode ser alargada e melhorada pelo uso. Não é planejada - é uma conseqüência não pretendida da necessidade de movimento fácil ou rápido. É assim que originariamente se faz um caminho - talvez mesmo por homens - e como podem surgir a linguagem e quaisquer outras instituições que são úteis; e eis como podem dever sua existência e desenvolvimento a sua utilidade. Não são planejadas ou pretendidas e talvez não houvesse necessidade delas antes de começarem a existir. Mas podem criar uma nova necessidade, ou um novo conjunto de alvos: a estrutura-alvo de animais ou homens não é "dada", mas se desenvolve com o auxílio de certo tipo de mecanismo de retrocarga, saído de alvos antigos e de resultados que eram visados ou não”.(60)

Aqui se sugere que o conhecimento humano se expressa em objetos culturais autônomos e independentes. Portanto, a cultura se constitui, ao menos em parte, de objetos independentes e autônomos. Todo seu argumento é construido no sentido de corroborar sua tese de que a epistemologia estuda objetos do mundo real. Um dos fundamentos da epistemologia popperiana consiste em sua teoria de que muito pouco se ganha com as epistemologias subjetivistas, que insistem em tentar explicar o caráter das idéias com base na consideração dos componentes psíquicos do sujeito cognoscente. Essa posição de implica que existem objetividade e autonomia nos objetos nos quais se expressa o conhecimento humano. A epistemologia, numa versão popperiana, deve se voltar para a análise dos problemas que decorrem dessa indepêndencia dos objetos do mundo 3, ou da objetidade da cultura.

Popper afirma:”Minha segunda tese é que o relevante para a epistemologia é o estudo de problemas científicos e situações de problema, de conjecturas científicas (que tomo como simplesmente outra expressão para hipóteses ou teorias científicas), de discussões científicas, de argumentos críticos e do papel desempenhado pela evidência em argumentos; e, portanto, de revistas e livros científicos; ou, em suma, que o estudo de um terceiro mundo de conhecimento objetivo amplamente autônomo é de importância decisiva para a epistemologia”.(61)

Com a idéia da autonomia do mundo 3, se pretende deixar claro o caráter objetivista da epistemologia. Essa tese se apóia na idéia de que o mundo 3, além de ser objetivo, é também autônomo, isto é, uma vez existente, é dotado de realidade própria, não dependendo, portanto, do sujeito que o produziu. O mundo 3 tem seu próprio domínio de autonomia, pois é capaz de produzir conseqüências que aquele que o produziu nem sempre prevê.

Os dois exemplos mais palpáveis nos quais isso ocorre são: a seqüência dos números naturais e as funções superiores da linguagem humana (função descritiva e a função argumentativa). Em relação à seqüência dos números naturais, podemos observar que, sendo uma construção humana, embora tenha sua gênese vinculada à invenção humana, ela tem desdobramentos próprios, cria seus próprios problemas, e nisso nao depende da intenção de quem a originou. Por exemplo, a distinção entre números ímpares e pares não é criada por nós, mas é uma conseqüência que, embora não tenha sido pretendida, é inevitável. Igualmente, a existência de números primos é um fato objetivo e autônomo, independente de nossa intenção de criá-los, eles existem como conseqüência de nossa invenção dos números naturais. E talvez essa nossa invenção contenha outros fatos que ainda não descobrimos, mas que igualmente não podemos controlar ou influenciar.(62)



18.



Outro exemplo bastante ilustrativo da autonomia do mundo 3 é expresso no caráter descritivo e argumentativo da linguagem humana. Segundo Popper, a linguagem humana tem quatro funções. E isso a faz distinta da linguagem animal, que possui apenas duas funções. Primeiramente, temos a linguagem auto-expressiva, pela qual um agente procura sintomatizar um estado de seu organismo. Em segundo lugar, a função sinalizadora, pela qual um agente procura liberar uma resposta em outro organismo com o qual pretende se comunicar. Essas duas primeiras funções seriam comuns a seres humanos e animais. Porém, a linguagem humana tem outras duas funções superiores. Assim, a função descritiva, na qual se apresenta um conteúdo que se ajusta aos fatos. E, finalmente, a função argumentativa, que aparece quando pretendemos criticar as descrições que fazemos da própria realidade ou da própria linguagem como um fato. As funções superiores da linguagem, que só aparecem em homens e mulheres, implicam a existência das funções inferiores.

A função argumentativa da linguagem se dá sobre a sua função descritiva. Assim, nosso poder de raciocínio, nosso poder de argumentação crítica, nada mais é do que a função argumentativa da linguagem. Essa função só se exerce sobre a função descritiva da linguagem. Assim, a função descritiva cria o objeto da função argumentativa. O nosso raciocínio argumentativo se dá sobre os objetos descritos por nossa linguagem. A atividade crítica que ocorre com a linguagem argumentativa se processa sobre um mundo à parte, identificável como o terceiro mundo, pois não é o mundo das estruturas reais (mundo 1) nem o mundo das estruturas mentais (mundo 2), mas o mundo das estruturas abstratas (mundo 3).

Esse mundo 3 se constrói pela função descritiva da linguagem e tem autonomia própria, pois o instrumento próprio de sua evolução e crescimento é a função argumentativa (crítica) da linguagem. E essa função crítica se processa segundo o modelo evolucionário. Isso significa que o modelo de crescimento do conhecimento se processa pelo esquema da eliminação do erro por meio da crítica racional.

Assim, formulado um problema, lançada uma teoria, desencadeia-se um processo de discussão crítica cujas consequencias não podemos prever ou conter. A ciência é apresentada como o exemplo típico de conhecimento que consiste de teorias conjecturais, problemas abertos, situações de problemas e argumentos. Nesses termos, ”...todo trabalho em ciência é trabalho dirigido para o crescimento do conhecimento objetivo. Somos trabalhadores que estamos aumentando o crescimento do conhecimento objetivo tal como pedreiros trabalham numa catedral”.(64)

Por meio da linguagem, toma-se possível demonstrar que o mundo 3 é autônomo, na medida em que revela a existência de uma dimensão do mundo dotada de um processo próprio de evolução. ”A linguagem, a formulação de problemas, a emersão de novas situações de problemas, teorias concorrentes, crítica mútua por meio de argumentação, tudo isso são os meios indispensáveis do crescimento científico. As funções ou dimensões mais importantes da linguagem humana (que as linguagens animais não possuem) são as funções descritiva e argumentativa. O crescimento dessas funções é, naturalmente, obra nossa, embora sejam conseqüências não pretendidas de nossas ações. Só dentro de uma linguagem assim enriquecida é que a argumentação crítica e o conhecimento no sentido objetivo se tomam possíveis.(65)


19.


A terceira e última tese em que Popper procura fundamentar sua epistemologia objetiva se baseia na idéia de que o estudo do procedimento metodológico do mundo 3 permite a discussão mais interessante de uma série de aspectos do processo do conhecimento. Esse enfoque nos permite uma compreensão mais interessante do conhecimento científico; mais interessante no sentido de mais explicativa, sem, contudo, perder seu caráter conjectural e hipotético. O que isso parece implicar é que devemos estudar os resultados do processo do conhecimento. Essa é a base de uma epistemologia objetiva. As epistemologias que estudam o conhecimento como fenômeno do segundo mundo não conseguem escapar a uma visão subjetivista do fenômeno, isto é, elas estudam o conhecimento como uma crença e não conseguem uma explicação satisfatória para o progresso científico, bem como não conseguem superar a instância da pura subjetividade do conhecimento. Essa posição parece bastante clara quando se afirma o seguinte:”Uma epistemologia objetivista que estuda o terceiro mundo pode ajudar a lançar imensa soma de luz sobre o segundo mundo da consciência subjetiva, especialmente sobre os processos subjetivos de pensamento dos cientistas; mas o inverso não é verdadeiro”.(66)


20.


A epistemologia, para Popper, é a teoria do crescimento do conhecimento, que se estuda na relação das teorias entre si, na forma como solucionam os problemas, na maneira como se processa a discussão crítica e se escolhe entre teorias concorrentes. É o método, ou lógica, de visar o crescimento do conhecimento”.(67)

É nesse ponto que a descoberta da similaridade entre o processo pelo qual se desenrola a vida e o modelo pelo qual acontecem e evoluem as idéias torna-se uma das teorias mais sugestivas da epistemologia objetivista de K. Popper. Ele argumenta que, assim como a vida, nosso conhecimento também evolui por um processo de dar e tomar que existe na relação entre o autor e a obra produzida. O mundo 3, embora produção do ser humano, é amplamente autônomo. Seu poder de impacto sobre cada um dos homens e mulheres é, em muito, superior às modificações que possamos fazer nele. Essa interação entre homens e mulheres e suas obras é que os fazem transcender a si próprios. Essa auto-transcendência é o fato mais notável de toda a vida e de toda a evolução, em particular da evolução humana.(68)

É por meio desse processo de relação entre seres humanos e suas teorias que se faz com que aqueles superem sua própria contradição. De um lado, a consciência de uma infinita ignorância e, de outro, uma luta desesperada pelo saber. Nas próprias palavras de Popper.”Eis como nos erguemos, por nossas próprias forças, do lodaçal de nossa ignorância; eis como lançamos uma corda no ar e depois subimos por ela - se houver conseguido prender-se, embora precariamente, em qualquer raminho. O que faz nossos esforços diferirem dos de um animal ou de uma ameba é apenas que nossa corda pode pegar onde prender-se num terceiro mundo de discussão crítica; um mundo de linguagem, de conhecimento objetivo. Isto nos toma possível descartar algumas de nossas teorias concorrentes. Assim, se formos felizes, podemos ter êxito na sobrevivência de algumas de nossas teorias errôneas (e muitas delas são errôneas) enquanto a ameba perecerá com sua teoria, sua crença e seus hábitos”.(69)


Conclusão


Essas considerações contêm uma tentativa de resolver os problemas das epistemologias subjetivistas. Conforme pudemos constatar na análise de alguns exemplos de teorias epistemológicas, sempre que o problema do sujeito cognoscente é posto claramente, torna-se problemático. Descartes teria tentado resolver algumas questões por meio de sua proposta de uma epistemologia racionalista. Kant preferiu buscar soluções pela caracterização da "transcendentalidade do eu", com suas formas "a priori" e seus pressupostos práticos. Husserl propôs a redução fenomenológica e eidética, na qual pretende converter o sujeito cognoscente a uma pura consciência cognitiva. Merleau-Ponty tentou por meio de sua "teoria dos perfis". Contudo, nenhum desses autores, assim como toda a epistemologia que se tem produzido dentro de uma perspectiva subjetivista, consegue apresentar uma solução que permita resolver os aspectos empírico, pessoal e aperceptivo do sujeito cognoscente, de forma a ressalvar a possibilidade do conhecimento objetivo.

Popper, ao mesmo tempo que aponta para a esterilidade das epistemologias subjetivistas, insiste na funcionalidade e no interesse de sua epistemologia do mundo 3.

Ao transformar a epistemologia no estudo de objetos culturais reais, autônomos e independentes do sujeito cognoscente, acredita-se ter estabelecido as condições para o entendimento do conhecimento humano em termos objetivos. A proposta aqui apresentada sugere que a questão da objetividade do conhecimento racional independe dos condicionantes do sujeito cognoscente. Os aspectos pessoais, empíricos e aperceptivos do sujeito cognoscente não têm implicações para a epistemologia, se considerarmos o conhecimento humano como dotado de existência própria.

A posição de Popper encaminha a questão da possibilidade de objetividade do conhecimento racional no sentido de identificar as condições dessa objetividade na análise de uma epistemologia sem sujeito conhecedor.


Notas e referências


1.POPPER, KARL R. Conhecimento objetivo. São Paulo, Itatiaia/Edusp, 1975, pp. 110-111.

2. Descartes diz: "O bom senso é a coisa do mundo melhor partilhada, pois cada qual pensa estar tão bem provido dele; mesmo os que são mais difíceis de contentar em qualquer outra coisa, não costumam desejar tê-to mais do que o têm. E não é verossímil que todos se enganem a tal respeito; mas isso antes testemunha que o poder de bem julgar e distinguir o verdadeiro do falso, que é propriamente o que se denomina o bom senso ou razão, é naturalmente igual em todos os homens; e, destarte, que a diversidade de nossas opiniões não provém do fato de serem uns mais racionais do que outros, mas somente de conduzirmos nossos pensamentos por vias diversas e não considerarmos as mesmas coisas. Pois não é suficiente ter o espírito bom, o principal é aplicá-lo bem. As maiores almas são capazes dos maiores vícios, tanto quanto das maiores virtudes, e os que só andam muito lentamente podem avançar muito mais, se seguirem sempre o caminho reto, do que aqueles que correm e dele se distanciam." (DESCARTES, RENÉ. Discurso do método. São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1973, p.41.)

3. Idem, ibidem, p. 48.

4. Idem, Princípios de filosofia. Lisboa, Guimarães Editores, 1971, p. 54.

5. Procurando explicar por que se pode duvidar da verdade das coisas sensíveis, Descartes afirma: "Mas, para que outro desígnio agora nos não ocupe a não ser o de nos aplicarmos à investigação da verdade, duvidemos, em primeiro lugar, se, de todas as coisas que caíram sob a alçada dos nossos sentidos, ou que alguma vez imaginamos, algumas há que existam verdadeiramente no mundo. Delas duvidaremos, tanto por termos sabido, por experiência, que os sentidos nos enganaram em várias ocasiões, e que, por isso, seria imprudência confiar demasiado naqueles que já nos enganaram, ainda mesmo quando tivesse sido uma só vez, como também por sonharmos, quase sempre, quando dormimos e então nos parecer que sentimos vivamente e imaginamos claramente uma infinidade de coisas que não se encontram onde as supomos"(idem, ibidem, p. 55).

6. Sobre a necessidade de duvidar também dos raciocínios e das demonstrações matemáticas, afirma: "Duvidaremos, também, de todas as outras coisas que outrora já nos pareceram muito certas, incluindo as demonstrações da matemática e seus princípios, embora estes sejam bastante manifestos, porque homens há que se equivocaram raciocinando sobre tais matérias, e, principalmente, porque temos ouvido dizer que Deus, que nos criou, pode fazer tudo o que lhe agrada, e não sabemos ainda se nos quis fazer de tal maneira que sejamos enganados, até em relação às coisas que melhor supomos conhecer" (idem, ibidem, pp. 55-56).

7. Idem, ibidem, p. 53.

8. Descartes afirma: "Enquanto desta maneira rejeitamos tudo aquilo de que podemos duvidar, e que simulamos mesmo ser falso, supomos, facilmente, que não há Deus, nem céu, nem terra, e que não temos eu. Mas não poderíamos atualmente supor que não existimos, enquanto duvidamos da verdade de todas estas coisas: porque, com efeito, temos tanta repugnância em conceber que aquele que pensa não existe verdadeiramente ao mesmo tempo que penso que, apesar das mais extravagantes suposições, não poderíamos impedir-nos de acreditar que esta inferência PENSO, LOGO EXISTO, não seja verdadeira e, por conseguinte, a primeira e mais certa que se apresenta àquele que conduz os seus pensamentos por ordem" (idem, ibidem, p. 57).

9. Na 2ª. Meditação, Descartes prossegue: "De sorte que, após ter pensado bastante nisto e de ter examinado cuidadosamente todas as coisas, cumpre enfim concluir e ter por constante que esta proposição, eu sou, eu existo, é necessariamente verdadeira, todas as vezes que a enuncio ou que a concebo em meu espírito" (idem; Meditações metafísicas. São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1973, pp. 125-126)

10. Descartes diz: "... verifico aqui que o pensamento é um atributo que me pertence; só ele não pode ser separado de mim. Eu sou, eu existo: isto é certo; mas por quanto tempo? A saber, por todo o tempo em que eu penso; pois poderia, talvez, ocorrer que, se eu deixasse de pensar, deixaria ao mesmo tempo de ser ou de existir. Nada admito agora que não seja necessariamente verdadeiro: nada sou, pois, falando precisamente, senão uma coisa que pensa, isto é, um espírito, um entendimento ou uma razão, que são termos cuja significação me era anteriormente desconhecida. Ora, eu sou uma coisa verdadeira e verdadeiramente existente; mas que coisa? Já o disse: uma coisa que pensa" (idem, ibidem, p. 128).

11. Descartes diz: "Mas o que eu sou, portanto? Uma coisa que pensa. Que é uma coisa que pensa? É uma coisa que duvida, que concebe, que afirma, que nega, que quer, que não quer, que imagina também e que sente. Certamente não é pouco se todas essas coisas pertencem à minha natureza" (idem, ibidem, p. 130).

12. Descartes diz: "Nesse primeiro conhecimento, só se encontra uma clara e distinta percepção daquilo que conheço; a qual na verdade não seria suficiente para me assegurar de que é verdadeira, se em algum momento pudesse acontecer que uma coisa que eu concebesse tão clara e distintamente se verificasse falsa. E, portanto, parece-me que já posso estabelecer como regra geral que todas as coisas que concebemos mui claramente e mui distintamente são todas verdadeiras" (idem, ibidem, p. 137). .

13. Ao conceituar essas duas características das idéias, Descartes afirma: "Porque o conhecimento sobre o qual se pretende estabelecer um juízo indubitável, deve ser, não somente claro, mas também distinto. Chamo claro àquilo que é presente e manifesto a um espírito atento: tal como dizemos ver claramente os objetos, quando, estando presentes, agem muito fortemente, e que os nossos olhos estão dispostos a fitá-los. E distinta aquela apreensão de tal modo precisa e diferente de todas as outras, que só compreende em si aquilo que parece manifestadamente ao que a considera como convém" (idem, Princípios de filosofia. Lisboa, Guimarães Editores, 1971, P. 90).

14. Idem, Discurso do método. São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1973, p. 67 ss.

15. Descartes diz: "Ora, é certo que as notamos muito mais no nosso pensamento do que em qualquer outra coisa, tanto mais que nada há que nos incite a conhecer seja o que for e que não nos conduza, ainda com mais certeza, a conhecer o nosso pensamento. Se, por exemplo, me persuado de que há uma terra, por a tocar e ver, por razão ainda mais forte devo estar persuadido de que o meu pensamento é ou existe, porque pode suceder que eu pense tocar a terra, embora não haja talvez nenhuma terra no mundo, e que não seja possível que eu, isto é, a minha alma, nada seja enquanto ela tem este pensamento. Podemos concluir o mesmo de todas as outras coisas que nos vêm ao pensamento, isto é, que nós, que as pensamos, existimos, embora elas sejam talvez falsas ou não tenham existência" (idem; Princípios de filosofia. Lisboa, Guimarães Editores, 1971, p. 62).

16. Descartes diz: "Suporei, pois, que há, não um verdadeiro Deus, que é a soberana fonte da verdade, mas certo gênio maligno não menos ardiloso e enganador do que poderoso, que empregou toda a sua indústria em enganar-me. Pensarei que o céu, o ar, a terra, as cores, as figuras, os sons e todas as coisas exteriores que vemos são apenas ilusões e enganos de que ele se serve para surpreender minha credibilidade. Considerar-me-ei a mim mesmo absoluta- mente desprovido de mãos, de olhos, de carne, de sangue, desprovido de quaisquer sentidos, mas dotado da falsa crença de ter todas essas coisas. Permanecerei obstinadamente apegado a esse pensamento; e se, por esse meio, não está em meu poder chegar ao conhecimento de qualquer verdade, ao menos está ao meu alcance suspender meu juizo. Eis porque cuidarei zelosamente de não receber em minha crença nenhuma falsidade, e prepararei tão bem meu espírito a todos os ardis desse grande enganador que, por poderoso e ardiloso que seja, nunca poderá impor-me algo" (idem, Meditações metafísicas. São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1973, pp. 122-123).

17. Idem. Princípios de filosofia. Lisboa, Guimarães Editores, 1971, p. 1 10.

18. Idem, As paixões da alma. São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1973, p. 307.

19. KANT, EMMANUEL Critica de la razón pura. Vol. 1. Buenos Aires, Losada, 1 976, pp.

20. MORENTE, MANUEL GARCIA. Lecciones preliminares de filosofia. Buenos Aires, Losada, 1962, p. 295.

21. M. Sciacca destaca este aspecto do sujeito cognoscente na epistemologia kantiana quando afirma: "Centro comum de todas as representações e condição suprema da sua unidade o Eu penso. O eu penso é a unidade sintética originária da apercepção. Não basta que as representações estejam em mim; no ato em que as unifico, são minhas, mas distintas de mim, representações minhas, mas de alguma coisa. Os múltiplos sujeitos individuais pressupõem uma unidade mais profunda, aquela que Kant chama consciência em geral ou Eu transcendental, ou atividade organizadora, consoante leis universais, de todas as representações possíveis de todas as possíveis consciências empíricas. A consciência em geral em todo sujeito se exprime como unidade transcendente da autoconsciência, que se manifesta como o 'Eu penso'. Esta consciência não age fora das consciências individuais, pois o ‘Eu penso’ não pode ser abstraído do sentido interno, próprio da consciência empírica que se torna autoconsciência, porque através dela age a consciência universal. O Eu penso é o legislador da natureza, o construtor do mundo da experiência, o unificador do múltiplo em conceitos de objetos. Não se conhece porém em si, como 'res cogitans' ou alma substancial, mas como atividade transcendental, isto é, nos modos do seu 'funcionamento"' (SCIACCA, MICHELE F. História da filosofia. Vol. 11. São Paulo, Mestre Jou, 1967, pp. 190-191).

22. Kant diz: "Temos, pois, duas classes de conceitos de uma espécie bem distinta uma da outra; porém, sem dúvida, elas têm em comum o fato de referirem-se completamente a priori a objetos, a saber: os conceitos de Espaço e de Tempo como formas da Sensibilidade, e as Categorias como conceitos do Entendimento. Querer buscar uma dedução empírica delas seria em vão, porque o aspecto distinto que as caracteriza é que se referem a objetos sem haver tomado para sua representação algo da experiência. A dedução desses conceitos tem de ser transcendente" (KANT, EMMANUEL Critica de la razón pura. Vol. 1, Buenos Aires, 1,osada, 1976, p. 231).

23. Kant diz: "A necessidade, a infinitude, a unidade, a existência fora do mundo (não como alma do mundo), a eternidade, sem condições de tempo, a ubiqüidade, sem condições de espaço etc., são meros predicados transcendentais e, em conseqüência, seu conceito depurado, tão necessário para toda teologia, somente pode ser deduzido do transcendente." (idem, ibidem, vol. 11, p. 280).

24. Kant diz: "Por conseguinte, a razão pura, que a princípio parecia prometer nada menos do que ampliar os conhecimentos além de todos os limites da experiência, não contém - entendendo-a como é devido - se não princípios reguladores que, se bem imponham uma unidade maior do que a que se pode conseguir com o uso empírico do entendimento, elevam mais alto a concordância do uso empírico do entendimento consigo mesmo mediante a unidade sistemática precisamente porque leva tão distante o fim a que este aspira aproximar-se; pelo contrário, quando se a interpreta erroneamente e se a tem por princípio constitutivo de conhecimentos transcendentais, graças a uma ilusão brilhante, porém enganosa, a uma persuasão e a um dever imaginário, se produzem, desta forma, eternas contradições e disputas" (idem, ibidem, vol. 11, p. 315).

25. idem, ibidem, vol. 11, p. 281.

26. MORENTE, MANUEL GARCIA. op. cit., p. 309.

27. KANT, EMMANUEL. Critica de la razón pura. Vol. 11. Buenos Aires, Losada, 1976, p.31.

28. M. Sciacca procura apontar para as conseqüências da posição de Kant quando diz: "Mas redução do 'a priori' ou das categorias à pura condição transcendental é uma afirmação injustificada e não criticamente demonstrada. Kant reduziu os elementos do conhecer à função do intelecto e é evidente que a objetividade do conhecimento jamais escaparia de uma subjetividade fundamental; com efeito, o conhecimento das coisas é conhecimento dos fenômenos e o mundo é nossa 'representação'. Se as idéias são formas vazias de um conteúdo sensível, o seu funcionamento fica bloqueado pela experiência e o conhecimento válido somente entre estes limites, isto é, entre os limites da ciência físico-matemática" (SCIACCA, MICHELE F. História da filosofia. Vol. 11. São Paulo, Mestre Jou, 1967, p. 202).

29. MARIA, JULIÁN. História da filosofia. Porto, Souza & Almeida, 1973, p. 399.

30. SCIACCA, MICHELE F. op. cit., vol. 111, p. 260.

31. MERLEAU-PONTY, MAURICE. Éloge de la philosophie et autres essais. Paris, Gallinard,1967, p. 38.

32. Idem. Fenomenologia da percepção. Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1971, p.

33. M. Ponty diz: "O verdadeiro cogito não é tête-à-tête do pensamento com o pensamento deste pensamento: eles só se reúnem através do mundo. A consciência do mundo não está fundamentada na consciência de si, mas são rigorosamente contemporâneas; há um mundo para mim porque não me ignoro; sou não dissimulado para mim mesmo porque tenho um mundo" (idem, ibidem, p. 303).

34. Ele afirma: "A pretensa evidência do sentir não é fundamentada num testemunho da consciência, mas no preconceito do mundo. Cremos saber muito bem o que é 'ver', 'ouvir', ‘sentir', porque depois de muito tempo a percepção nos deu objetos coloridos ou sonoros. Quando queremos analisá-la, transportamos estes objetos à consciência. Cometemos o que os psicólogos chamam 'experience error', isto é: supomos de um só golpe em nossa consciência das coisas o que sabemos estar nas coisas. Fazemos percepção com o percebido. E como o próprio percebido só é evidentemente acessível através da percepção, acabamos por não compreender nem um nem outro. Estamos presos ao mundo e não conseguimos nos destacar dele para passar à consciência do mundo. Se o fizéssemos, veríamos que toda consciência é consciência de alguma coisa" (idem, ibidem, p. 23).

35. M. Ponty afirma: "A percepção é justamente este gênero de ato em que não se poderia colocar à parte o ato mesmo e o termo sobre o qual ele se dirige. A percepção e o percebido têm necessariamente a mesma modalidade existencial, pois não se poderia separar da percepção a consciência que ela tem ou, mais certamente, que ela é de atingir a coisa. Não se trata de manter a certeza da percepção recusando a da coisa percebida. Se vejo um cinzeiro, no sentido pleno da palavra ver, é necessário que haja aí um cinzeiro, e não posso reprimir esta afirmação. Ver, é ver alguma coisa. Ver o vermelho, é ver o vermelho existente no ato" (idem, ibidem, p. 378).

36. Idem, ibidem, p. 54.

37. Idem, ibidem, p. 77.

38. Idem, ibidem, p. 40.

39. M. Ponty condena o dualismo cartesiano referente ao mundo e ao pensamento. Ele diz:"Assim a experiência do corpo próprio se opõe ao movimento reflexivo que liberta o objeto do sujeito e o sujeito do objeto, e que só nos dá o pensamento do corpo ou o corpo em idéia e não a experiência do corpo na realidade. Descartes sabia-o bem, pois uma célebre carta a Elizabeth distingue o corpo tal como é concebido pelo uso da vida do corpo, tal como é conhecido pelo entendimento. Mas em Descartes este saber singular que temos de nosso corpo deriva do único fato de que somos um corpo ainda subordinado ao conhecimento por idéias por que, atrás do homem tal como o é de fato, encontra Deus como autor racional de nossa situação de fato" (idem, ibidem, p. 209).

40. M. Ponty diz: "Quando Descartes nos diz que a existência das coisas visíveis é duvidosa, mas que nossa visão, considerada como simples pensamento de ver, não o é, esta posição não é suportável. Porque o pensamento de ver pode ter dois sentidos. Pode-se primeiramente compreendê-lo no sentido restritivo de visão pretensa ou 'impressão de ver'; então só temos com ele a certeza de um possível ou de um provável, e o 'pensamento de ver' implica em que tenhamos tido, em certos casos, a experiência de uma visão autêntica ou efetiva à qual o pensamento de ver se assemelha e na qual a certeza da coisa foi, desta vez, englobada. A certeza de uma possibilidade só é a possibilidade de uma certeza; o pensamento de ver só é uma visão em idéia, e não o teríamos se não tivéssemos por outro lado a visão da realidade" (idem, ibidem, p. 379).

41. Idem, ibidem, p. 77.

42. M. Ponty afirma: "A experiência revela, sob o espaço objetivo no qual finalmente o corpo se localiza, uma especialidade primordial da qual a primeira é somente o invólucro e que se confunde com o próprio ser do corpo. Ser corpo, é estar unido a um certo mundo, já o vimos, e nosso corpo não está primeiramente dentro do espaço; ele está no espaço" (idem, ibidem, p. 159).

43. M. Ponty afirma: "O fenômeno central, que fundamenta ao mesmo tempo minha subjetividade e minha transcendência no sentido do outro, consiste em que sou dado, isto é, já me encontro situado e engajado num mundo físico e social - sou dado a mim mesmo, isto é, esta situação não me é nunca dissimulada, nunca está em torno de mim como uma necessidade estranha e nunca estou fechado como um objeto numa caixa" (idem, ibidem, p. 363).

44. Idem. Éloge de la philosophie et autres essais. Paris, Gallinard, 1967, p. 72.

45. POPPER, KARL R. Conhecimento objetivo. Belo Horizonte, Itatiaia/Fdusp, 1975, p. 1 10. 46. Idem, ibidem, p. 110. 47. Idem, ibidem, p. 78.

48. MAGEE, BRYAN. As idéias de Popper. 11 ed. São Paulo, Cultrix/Edusp, 1974, p. 65.

49.ldem, ibidem, pp. 65-66.

50. BOUVERESSE, RENÉE. Karl Popper. Paris, Vrin, 1978, p. 95.

51. POPPER, KARL R. Conhecimento objetivo. Belo Horizonte, Itatiaia/Edusp, 1975, p. 47. 52. Idem, ibidem, pp. 109-110.

53. Idem, Autobiografia intelectual. São Paulo, Cultrix/Edusp, 1977, p. 192.

54. Idem, ibidem, p. 194.

55. Idem, ibidem, p. 195.

56. Idem, ibidem, p. 199.

57. BOUVERESSE, RENÉE. Karl Popper. Paris, Vrin, 1978, p. 1 14.

58. POPPER, KARL R. Conhecimento objetivo. São Paulo, Itatiaia/Edusp, 1975, p. 117.

59. Idem, ibidem, p. 11.

60. Idem, ibidem, p. 119.

61. Idem, ibidem, p. 113.

62. Idem, ibidem, pp. 119-120.

63. Idem, ibidem, p. 122.

64. Idem, ibidem, p. 122.

65. Idem, ibidem, p. 124.

66. Idem, ibidem, pp. 113-114.

67. Idem, ibidem, p. 143.

68. Idem, ibidem, P. 146.

69. Idem, ibidem, p. 146.

12 comentários:

Prof. Luis A. Peluso disse...

Caros Alunos,
Após ler o texto, faça um breve comentário de 15 linhas.

Ale disse...

Neste texto temos uma apresentação da tentativa de se fazer conhecer o mundo, estudar seus problemas, por meio da epistemologia subjetiva. Nas diversas abordagens, sempre se coloca o problema do sujeito numa tentativa de resolvê-lo, tentando separar as sensações da experiência, procurando-se buscar as idéias iniciais, ignorar o mundo físico... , mas de forma imprecisa acabamos sempre chegando a mais questões, buscando uma essência ou significado que não tem traz resultado algum ou é controverso em si próprio.
Já Popper, com sua teoria de 3 mundos (mundo 1 – estrutura real, física; mundo 2 – mundo mental; mundo 3 – mundo abstrato, das idéias) tenta mostrar que tudo está interligado, apesar de ser autônomo. Ele exemplifica e tenta provar que o mundo 1, apoiado pelo mundo 2, pode alimentar o mundo 3, assim como o mundo 3, por intermédio do mundo 2, influi no mundo 1. Mas afirma que um mundo não precisa de outro para sua própria existência. Ou seja, o mundo 1 pode muito bem viver ser o mundo 3, assim como o mundo 2, mas para acessá-lo, somente por intermédio deste último. Já o mundo 3, mesmo sem a base de seu surgimento do mundo 1 permanece intacto e preciso, podendo somente influir no mundo 1 pelo mundo 2. Assim, para estudar os problemas do mundo, não temos como, nem devemos, separar as coisas, mas sim nos dispormos a estudar os casos, lembrando que os aspectos de cada mundo não interferem nos demais, pois eles são autônomos entre si, mas que precisam dos demais para “evoluir”.

ney carvalho disse...

Na busca de uma filosofia cientifica, pensadores como Descartes, Kant, Hussel e Merleau – Ponty procuram uma definição para uma epistemologia subjetiva ,uma definição que é valida a todos , analisar os aspectos da estrutura psicológica do sujeito cognoscente , que é representado por três aspectos: empírico,pessoal e aperceptivo, mesmo com suas conjecturas e algumas refutações esses não conseguem uma exteriorização do sujeito cognoscente, não consideram o próprio conhecimento como evolutivo e existencial, o que é contestado por Popper posteriormente.
Popper nos apresenta uma divisão de três mundos que processam o conhecimento cientifico
O 1º o mundo das nossas experiências consistentes. Um 2º um mundo de estruturas mentais. Um 3º mundo no qual pertencem os conhecimentos objetivos, teoria objetiva, problemas objetivos e argumentações objetivas, o mundo objetivo dos conteúdos lógicos.
mundos independentes, porem necessarios para evoluir.

Dono do blogg disse...

Nota-se, a partir da leitura do texto, que há um tipo de evolução ao se indagar sobre o sujeito cognoscente e os objetos. Os subjetivistas conseguiram chegar à conclusão de que há a própria existência, mas não conseguiram evoluir muito desta primeira idéia. Descartes ainda tinha que supor a idéia de que há um Ser Perfeito que continha a essência das coisas para sustentar as suas idéias.Husserl e Kant também estavam preocupados com relação à construção de uma filosofia universal, atendo-se á ideais essencialistas, o que foi certamente um equívoco. Merleau-Ponty já tem uma visão um pouco mais crítica, analisando o sujeito cognoscente como um ser limitado e que não conseguiria chegar à essência das coisas pois não possui todos os pontos de vista bem esclarecidos sobre elas.
Popper finalmente desvia-se para outro foco, analisando o objeto como algo independente do sujeito cognoscente e que este objeto pertence a três conjuntos distintos, à realidade, ao nosso intelecto e o mais importante ao mundo das teorias.

Rodrigo Santiago disse...

Os sujeitos cognoscentes comprometem a objetividade e podem ser caracterizados por três aspectos: aspecto empírico, aspecto pessoal e aspecto aperceptivo. No aspecto empírico o conhecimento humano depende de fatores referentes à estrutura do sujeito cognoscente. Ele caracteriza o conhecimento humano autêntico da condição humana sendo independentes e anteriores ao próprio ato de conhecer. No aspecto pessoal o sujeito cognoscente se caracteriza reagindo de modo pessoal às situações. O sujeito determina por iniciativa de que jeito procede a investigação ao conhecimento, tendo ela um caráter original. No aspecto apercetivo o conhecimento não pretende ser de caráter individualista e subjetivo, colocando-se imparcialmente como espectador e superando qualquer posição pessoal.Um exemplo de teoria epistemológica subjetivista esta em R. Descartes que caracteriza o caráter subjetivista de sua teoria através de três idéias: a dúvida, o cogito e a evidência, todas elas levando em consideração o bom senso corretamente. A dúvida para ele consiste em considerar como falso tudo aquilo que tiver alguma incerteza, tendo como objetos de dúvida os sentidos externos e demonstrações por exemplo. Para solucionar a dúvida é necessário o cogito que significa uma verdade primeira, que torna possível a construção de um novo critério de validade do conhecimento humano, qual seja a evidência. Essa primeira verdade se caracteriza por ser clara e distinta, resistindo a qualquer dúvida. Enfim, o sujeito cognoscente de Descartes se caracteriza por um ser egocêntrico, não possibilitando que ele seja algo parcial e objetivo.Outro exemplo de teoria subjetivista foi a de Kant. Para ele é impossível se chegar a essas condições, somente é possível a ciência descritiva experimental. Na análise de seu sujeito cognoscente, ele elimina os aspectos pessoais e empíricos e diz que a condição básica no conhecimento esta no “eu transcedental” que age de acordo com sua própria natureza. Conclui que a experiência é um limite do conhecimento e que é impossível estabelecer a metafísica como conhecimento racional. Agora, por outro lado temos a teoria epistemológica objetivista proposta por Popper. Essa nova teoria objetivista se caracteriza pela separação entre sujeito cognoscente e conhecimento. Popper sugere a existência de um mundo próprio (mundo 3) para nossas teorias e pressuposições, colocando o fundamento do conhecimento na realidade exterior ao sujeito cognoscente. Esse conhecimento num sentido objetivo seria o conjunto de problemas, teorias e argumentos produzidos pelo sujeito cognoscente, desconsiderando implicações psicológicas e subjetivistas.Com essa caracterização das teorias sugere-se a existência de três mundos: o mundo 1 que é o mundo dos objetos físicos e estados materiais, o mundo 2 que caracteriza o mundo de nossa realidade subjetiva constituída de nossas experiências conscientes; e por fim, o mundo 3, o mundo objetivo do pensamento científico, filosófico e artístico que existem independentes do sujeito. Esse mundo aborda sistemas teóricos que contém situações de problemas seguidas do estado de discussão desses problemas. Portanto um mundo cheio de idéias, ciência, arte, linguagem, instituições, ou seja, estados materiais do mundo 1 que sustentam o mundo 3.Assim, esse mundo possui um conhecimento que tem realidade objetiva, distinto do sujeito cognoscente. Além disso, ele têm vida própria a partir da existência do ser humano para esse conhecimento ser produzido, portanto ele é autônomo. Além do mais, com a relação entre seres humanos e suas teorias, eles deixam de ser contraditórios, com uma luta atrás do saber ou consciência de uma ilimitada ignorância.

Giuliano disse...

O texto faz referência novamente a busca de padrões para a definição de conhecimento científico e as "formas" para sua aceitação.
Mostra, a princípio, que grandes pensadores como Descartes, Kant, Husserl e Merleau-Ponty tentaram definir os preceitos para a verdade do conhecimento de forma subjetiva, falhando sempre, na visão de Popper, na consideração do processo psicológico do sujeito cognoscente.
O filósofo então, propõe a teoria do mundo 3, trabalhando sobre uma estrutura piramidal de forma a termos três mundos:
O mundo das estruturas reais (mundo 1), o mundo das estruturas mentais (mundo 2) e o mundo das estruturas abstratas (mundo 3).
Tratando agora de maneira totalmente diferente a "forma" citada anteriormente.
Essa tese se apóia na idéia de que o mundo 3, além de ser objetivo, é também autônomo, isto é, não depende do sujeito que o produziu. Fazendo a separação da idéia e do autor. Apesar não poder agir diretamente sobre o mundo físico, precisando então de uma mediação pelo mundo 2 (mundo da mente), este traz conseqüências ao mundo físico que aquele que o produziu nem sempre prevê. Tornando a idéia das teorias uma idéia real, fazendo uma analogia á corrente elétrica ou aos gases.
Com todas essas ressalvas, verificamos novamente o encaminhamento do conhecimento científico no sentido do racionalismo crítico, já que as teorias podem ser separadas dos autores e analisadas sem a consideração de quem as criou. Com isso a crítica se torna muito mais eficaz e o avanço continua.

IRS disse...
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IRS disse...
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IRS disse...

A problemática que encontramos no que se refere ao conhecimento é aqui exposta devido à objetividade que a explanação do saber requer. Como o conhecimento pode ser objetivo, visto que as pessoas têm em si questões e mais questões que são guiadas por seu interior, por sua subjetividade? O próprio interesse por certos assuntos permeia nos seres humanos características subjetivas a cada um.
Filósofos como Descartes, Hussel e Kant trataram de tal aspecto, da filosofia intrínseca aos seres humanos pensantes, ao ser cognoscente e suas considerações subjetivas. Mas alguns deles, como HUssel e Kant, buscavam uma essência para as coisas. A complexidade as relações entre as concepções existentes, entre a matéria e o pensamento, entre fé e a razão, entre diversos outros aspectos exemplificantes, mostra que a busca de uma essência para o mundo não é tão fácil de achar.
Ora, Popper defendia o conhecimento objetivo. Mas Como o conhecimento pode ser objetivo se há tantas considerações interligadas, complexas, entre teorias, pensamentos, se questões e questões levantam outras, de modo a nunca certos mistérios serem esclarecidos? Popper então apresenta a ideia dos três mundos, que estariam interligados, mas seriam ao mesmo tempo independentes um do outro: o físico, o mental e o abstrato.
Tal ideia é interessante pois, se não dá total liberdade ao objetivismo, nos explana as correlações existentes entre as considerações interiores dos seres cognoscentes com sua experiências práticas.

Renato disse...

Creio que este texto tem um sentido mais "geral" do mundo do que pensamos ao ler. Após pensar e analisá-lo com calma, chego a conclusão de que essa filosofia de popper, de um pensamento mais objetivo sobre o mundo e sobre as teorias científicas é a forma mais racional de se pensar sobre algo. As vezes somos subjetivos demais com algo que, na verdade, necessita de objetividade. Então acabamos nos vendo em situações complicadíssimas, quando na verdade o certo era simplificar, ir direto ao ponto, e não dar voltas em volta dele. A teoria dos 3 mundos, físico, menta e abstrato, mostra de uma forma simples e precisa como desenvolvemos nossas idéias e aplicamo-nas nas teorias científicas.

Ana Valle disse...

Vários autores, assim como toda a epistemologia subjetiva produzida, tentaram sem sucesso, chegar a uma solução que tornasse viável resolver os aspectos empírico, pessoal e aperceptivo do sujeito cognoscente, já que estes afetam a possibilidade do objetividade do conhecimento racional.
Popper, por sua vez, desenvolveu a teoria dos 3 mundos, onde eu entendo como: o mundo 1 é o mundo real, o mundo 2 é a nossa visão (ou conhecimento subjetivo das coisas), o mundo 3 é se encontra as teorias (conhecimento objetivo). Ele afirma que um mundo não precisa de outro para sua própria existência, alegando que estes mundos são autônomos entre si, somente precisam dos demais para evoluir, mudar de estado.
O que entendo por isso é que, por exemplo, quando alguém está formulando uma teoria, esta está na mente da pessoa, logo pertence ao mundo 2. A partir do momento em que a pessoa formaliza a teoria em livros e artigos, esta passa a pertencer ao mundo 3. Quando eu abro um livro para estudar, transfiro esse conhecimento do mundo 3 (livro) para o mundo 2 (minha cabeça).
Popper se foca no terceiro mundo, onde existem duas características fundamentais: a objetividade e a autonomia. Quanto à objetividade, para Popper, há dois sentidos: significa que existe um mundo real e é nele que chega o conhecimento científico ou significa que o conhecimento é distinto do sujeito cognoscente. Além disso, é autônomo, ou seja, uma vez existente, adquire realidade própria, não dependendo do sujeito que o produziu. Logo, podemos perceber que o mundo 3 é mais independente que os outros. Desta forma acredita-se ter estabelecido as condições para o entendimento do conhecimento humano em termos objetivos. Agora fica a questão: a teoria, quando foi formulada, passou por uma análise subjetiva, no mundo 2, antes de ir para o mundo 3, será que é possível considerar o conhecimento objetivo como plenamente objetivo?

Unknown disse...

O enfoque do texto é a comparação entre o subjetivismo e o objetivismo. Me parece que as teorias subjetivistas, por não conseguirem se desfazer do eu cognoscente, não conseguem tratar o conhecimento como algo separado do psicológico do ser pensante. O que é um grande problema, pois como podemos ter garantia de que o conhecimento é possível se não é possível dissociá-lo da visão de mundo daquele que o formula. No entanto Popper oferece uma solução interessante com a teoria dos 3 mundos ao considerar que o conhecimento, quando externado, seja por meio de livros ou discurso falado, ganha vida própria, se tornando assim independente do eu cognoscente, o segundo mundo. Eu particularmente achei o argumento de Popper muito bom. Ele me lembra um episódio do desenho americano "South Park" em que os personagens discutem sobre se seres imaginários são reais ou não (devido à natureza do humor do desenho não vou comentar para qual fim era a discussão), mas o interessante é que a conclusão chegada lembra muito a teoria dos 3 mundos de Popper. Ela é que os seres imaginários exercem grande influência no mundo, muitas vezes superior à influência das pessoas reais (Jesus é citado como exemplo no desenho), logo esses devem de certo modo ser considerados reais, assim como Popper propôs que as idéias têm vida própria.