terça-feira, 16 de março de 2010

CAPÍTULO 8 - Ciência e Progresso Científico

CIÊNCIA E PROGRESSO CIENTÍFICO


“Pense no cientista como um explorador de labirintos. Ele se meteu pela ala à esquerda, terminou num beco sem saída, voltou e colocou na entrada um sinal vermelho. Esse sinal é digno de confiança, final, decisivo. Ele prossegue, encontra caminhos abertos, volta, coloca um sinal verde. Esse sinal não é digno de confiança. Nada garante que, mais adiante, a ala por ele explorada não termine também num beco sem saída. O sinal vermelho diz: é inútil entrar por este caminho. Tal sinal tem um enorme valor: poupar esforços. A informação de que certos caminhos não levam a lugar algum é informação tão importante como quaisquer outras. Se você encontra, no início da rua, uma tabuleta com a informação "beco sem saída", você não entra por ela. Economizará. Isso também é conhecimento”.(Rubem Alves. Filosofia da ciência. São Paulo, Brasiliense, 1981,p.179)


Introdução


Uma das conclusões do debate sobre o desenvolvimento da ciência é que o progresso científico não se constrói, como comumente somos tentados a entender, por meio de acumulação de observações nem por meio de saltos revolucionários resultantes da luta de opostos. O que ocorre é a substituição de teorias menos satisfatórias por outras mais satisfatórias, isto é, substituímos teorias em função de seu conteúdo informativo e de sua resistência aos testes. Há um autêntico processo de competição entre as teorias, uma luta pela sobrevivência. É nesse ponto que se inicia a estreita analogia entre a teoria da evolução e o processo de evolução das teorias.(1)

Popper argumenta que a teoria do conhecimento científico não pode ser dissociada de uma teoria evolucionista; é impossível a compreensão de certas questões epistemológicas, sem evidenciar sua relação com a teoria da evolução. Neste capítulo, o argumento de Popper será reconstruído em três partes. Num primeiro momento, procuraremos identificar os princípios básicos e algumas dificuldades filosóficas da teoria da evolução. Num segundo instante, efetuaremos a análise de alguns aspectos da teoria popperiana do conhecimento científico. Final- mente, abordaremos o problema da relação existente entre a teoria da evolução e a teoria do conhecimento científico.


1.



A posição de Popper implica que a teoria da evolução, no sentido que lhe é atribuído por suas versões mais modernas e que, a seguir, procuraremos descrever, pode ser entendida como "lógica situacional". Assim, tem mais o sentido de um "programa de pesquisa" e menos o de uma teoria científica. A teoria de que a vida evolui por tentativa e eliminação do erro é uma proposta mais lógica do que propriamente biológica. O mundo, entendido como um sistema de referência cuja constância é limitada, composto de entidades cuja variabilidade é restrita, é o campo onde se desenvolve a proposta de que sobrevivem algumas entidades resultantes da variação, que se adaptam às condições do sistema de referência. Outras entidades, antagônicas ao sistema, deverão perecer.

Contudo, a seleção darwinista pode ser aplicada mesmo num sistema onde a vida não exista. Nesse sentido, é interessante a análise de Jacques Monod, quando afirma: “O resultante de quanto se disse é constituir um erro conceitual a afirmativa de que a evolução é uma lei, ou mesmo de que a evolução é uma lei aplicável a seres vivos. Isso é errôneo. O privilégio dos seres vivos não é o de evoluir, mas, ao contrário, o de conservar. (Sinto dizer isso, especialmente diante de um grande número de estudantes, mas este é o caso.) O privilégio dos seres vivos é o de possuir uma estrutura e um mecanismo que lhes asseguram duas coisas: (i) reprodução fiel ao tipo da própria natureza e (ii) reprodução, igualmente fiel ao tipo, de qualquer acidente ocorrido na estrutura. Se temos isso, temos evolução, pois temos conservação de acidente. Os acidentes podem ser recombinados e expostos à seleção natural, para verificar se têm ou não significado. A evolução não é uma lei; é um fenômeno que ocorre quando temos estruturas desse gênero”. (2)

Ao acrescentarmos ao mundo caracterizado acima a idéia da vida, isto é, a idéia de corpos capazes de se auto-reproduzirem, então a idéia da tentativa e eliminação do erro se torna uma necessidade lógica para a perfeita compreensão do sistema. Há, ainda, uma outra variável complicadora, que pode ser introduzida nesse mundo que estamos imaginando. Suponhamos que nesse mundo exista a linguagem, a possibilidade de comunicação, quer descritiva quer argumentativa. Imaginemos, agora, que essa linguagem pode ser crítica. Aparecerá, assim, um sistema extremamente complexo, ao qual se pode aplicar a teoria darwinista da tentativa e eliminação do erro. Encontramos essas idéias no seguinte texto de Popper:“Se é aceitável a concepção da teoria darwinista como lógica situacional, então, poderemos explicar a estranha semelhança entre minha teoria acerca do crescimento do saber e o darwinismo: ambas seriam exemplos de lógica situacional. O elemento novo e especial do enfoque científico consciente do saber - da crítica consciente das conjecturas (por meio de críticas a elas dirigidas) - seria uma conseqüência do aparecimento de uma linguagem descritiva cujas descrições admitem crítica. O aparecimento de tal linguagem nos levaria a defrontar, de novo, uma situação altamente improvável e possivelmente única, talvez tão improvável quanto a própria vida. Contudo, dada tal situação, a teoria de crescimento exossomático do saber, por um processo consciente de conjectura e refutação, seguir-se-ia "quase" logicamente: toma-se parte da situação, bem como parte do darwinismo. (3)



2.



Segundo Popper, a teoria darwinista possui caráter metafísico e, portanto, não-científico. Ao contrário do que possa parecer, essa teoria não é suscetível de prova. Contudo, nem por isso deixa de ser importante instrumental científico, lançando muita luz sobre pesquisas de caráter concreto e prático. Sua grande oportunidade está no fato de permitir a análise e compreensão de um mecanismo de ação dos seres vivos. Popper argumenta que a teoria da evolução proposta por Darwin não é uma teoria científica, mas, sim, um "programa de pesquisa metafísica".(4)

Os pressupostos do programa darwinista de pesquisa metafísica poderiam ser assim expostos: A grande variedade de formas de vida existentes sobre a Terra origina-se de um único organismo. Donde se evidencia que a teoria é uma explicação histórica, havendo uma seqüência explicativa entre os membros que compõem as espécies.

A explicação para tal desenvolvimento tem um sentido lógico em função de certas idéias, tais como : a "hereditariedade", isto é, os descendentes reproduzem os organismos-pais de maneira bastante fiel; a "variação", ou seja, a existência, entre os membros componentes da espécie, de pequenas variações, muitas delas mutações hereditárias; a “seleção natural", isto é, a idéia de que existe um mecanismo pelo qual são eliminadas as variações impróprias, pelo perecimento da espécie ou do espécime, assim como existe o controle da transmissão do material hereditário, que se constitui em mutações convenientes; e a "variabilidade", isto é, o fato de que a própria capacidade de sofrer variações poder ser controlada pela seleção natural dos mais aptos.(5)

O argumento de Popper conclui que, ao contrário do que vulgarmente se pensa, a teoria darwinista não é uma teoria suscetível de prova. O darwinismo não tem poder explicativo suficiente para elucidar a evolução de uma grande variedade de formas de vida existentes sobre a terra. Apenas sugere que, se a evolução ocorrer, será sempre gradual. Esse é um dos aspectos fundamentais da teoria, por se constituir no cerne da árvore da evolução.

As mutações se constroem por meio de pequenas alterações de base genética nos seres vivos. Quando aparecem grandes mudanças, supõe-se a existência de estágios intermediários. Mas a grande indagação é sobre o sentido, a direção dessas mutações. A teoria da evolução sugere que as seqüências evolutivas se processam a esmo. É aqui que se verifica uma contribuição toda especial de Popper à teoria darwinista, conduzindo-a, talvez, à solução de uma série nova de problemas circunstanciais que, até o presente, colocavam-se como impasses à teoria.

A questão principal consiste em descobrir uma forma de explicar se há algum sentido na mutação nos seres vivos; em explicar como se pode conciliar as tendências ortogênicas e a mutação acidental. Colocando-a em um exemplo prático, toda a questão se resume em como explicar que o olho, com toda sua complexidade, pode resultar da cooperação puramente acidental de mutações independentes. Esse problema coloca a questão da existência de um sentido na evolução.


3.


A pressão externa e a seleção são distintas. A primeira é determinada pela ação do ambiente e a segunda, em função da pressão interna. A pressão seletiva interna provém do próprio organismo e, em última instância, de suas preferências (finalidades), embora estas possam mudar, respondendo às mudanças externas. A pressão interna é exercida por diferentes classes de genes: os que controlam principalmente a anatomia ("a"); e os que controlam principalmente o comportamento ("b"). Existem, aparentemente, os genes intermediários (inclusive os de funções mistas). Os genes "b" podem se apresentar como genes que controlam preferências ou finalidades ("p") e genes que controlam habilidades (“s”).6

Passemos, agora, à análise de algumas circunstâncias. Assim,pode-se afirmar que mudanças ambientais podem gerar novos problemas, que determinarão novas preferências ou finalidades; estas precipitarão o surgimento de alterações na natureza de habilidades, conforme as novas necessidades; e, finalmente, advirão modificações na estrutura anatômica dos indivíduos.


Jacques Monod analisa o comportamento como orientador das pressões de seleção: “Uma outra dificuldade para a teoria seletiva provém de que, freqüentemente, ela foi compreendida ou apresentada como algo que apela apenas para as condições de meio exterior como agentes da seleção. Eis uma concepção absolutamente errada, pois as pressões de seleção que as condições externas exercem sobre os organismos, em nenhum caso, são independentes das performances telenômicas características da espécie. Organismos diferentes, vivendo no mesmo "nicho" ecológico têm com as condições externas (inclusive com os outros organismos) interações muito diferentes e específicas. São essas interações específicas, em parte "escolhidas" pelo próprio organismo, que determinam a natureza e a orientação da pressão que ele sofre”.(7)

Vejamos um exemplo concreto: suponhamos um animal que, devido a um cataclisma natural, tem destruída sua principal fonte de alimentação. A mudança ambiental acarretará novos problemas. O animal imediatamente buscará novas preferências ou finalidades ("b"), isto é, procurará explorar novos tipos de alimentos. Essa tentativa favorecerá aqueles cuja estrutura de preferências ou de finalidades ("p") já antecipa o novo padrão de preferências ou finalidades. Em seguida, as mudanças na estrutura de habilidades ("s") serão processadas para conseguir o alimento e, finalmente, ocorrerão mudanças na estrutura anatômica (“a"). Dessa forma, Popper conclui afirmando que, nesses casos de ortogênese, a pressão seletiva interna é dirigida e sugere o seguinte tipo de esquema para a descrição do mecanismo interno ativado:

b

p s a


Isso significa que a estrutura de preferências e suas variações ("p") controlam a seleção da estrutura de habilidades e suas variações ("s"); conclui-se, portanto, que a estrutura de comportamento ("b") controla a seleção da estrutura anatômica e suas variações (“a”).(8)

O mecanismo acima descrito é dinâmico, de forma que a nova estrutura anatômica ("a") agirá como reforço, regressivamente, sobre a estrutura comportamental (b = p - s). Chegamos, portanto, à conclusão de que são as mutações da estrutura de preferências ou finalidades que deflagram a ortogênese.

Notamos que as relações entre "p", "s" e "a" ocorrem conforme os seguintes modelos:

I.Ação das mutações da estrutura de finalidade ("p") sobre a estrutura anatômica ("a"). Essa ação se processa segundo dois parâmetros: 1) alteração em "p" sem adaptação em "a" a espécie perece; 2) alteração em "p" com adaptação em "a" a espécie sobrevive.

II.Ação das mutações da estrutura anatômica ("a") sobre a estrutura de finalidade ("p"). Essa ação acontece conforme o seguinte processo: a estrutura anatômica pode sofrer alterações, então, a estrutura de finalidade corre o risco de se ver paralisada e podem seguir-se outras especializações anatômicas.

Essas considerações, embora de evidente complexidade, são fundamentais para resolver um dos problemas mais sérios com que se depara o evolucionismo, qual seja, o de identificar as razões pelas quais a evolução se processa no sentido de produzir as chamadas "formas superiores de vida". Em função da predominância de "p" no processo de mutação, é possível compreender melhor tal problema. Conforme J. Huxley: “Observando o processo da evolução biológica como um todo, veremos que ele tende à produção de tipos que podem utilizar mais recursos materiais do mundo com maior eficiência. Para tanto, os processos de metabolismo fisiológico são aperfeiçoados e surgem novos tipos de utilização metabólicas”.(9)

Dessa forma, as chamadas formas superiores de vida são, simplesmente, estruturas de preferências comportamentais mais ricas.

Quanto ao problema da separação e diversificação das espécies, pode ser entendido como resultado da separação de locais. O que isso significa é que qualquer alteração na estrutura comportamental preferencial poderá explicar o aparecimento de novas espécies.

Quanto ao problema da existência de um sentido para a evolução das espécies, ou processo de seleção dos mais aptos, Popper encaminha questão no sentido de compreendê-la, mais como proposta de solução de problemas do que, propriamente, como questão de sobrevivência. É certo que todo organismo está constantemente sob a ameaça de extinção, mas essa ameaça toma a forma de problemas a resolver. Por essa razão, podemos afirmar que compreender os organismos como solucionadores de problemas parece melhor do que considerá-los como perseguidores da própria sobrevivência. (10)

Entender o processo de seleção dos mais aptos como o problema de sobrevivência dos mais aptos é, sobretudo, elaborar uma construção tautológica. Afirmar que "os que sobrevivem são os mais aptos" é o mesmo que dizer que "os que sobrevivem são os que sobrevivem", já que os mais aptos são justamente os que sobrevivem."

Popper argumenta em favor de uma posição que podemos caracterizar como neo-darwinista. Segue-se dessa posição que os organismos estão constantemente empenhados na luta por soluções de problemas. Dessa forma, todos os "filos" (segmentos evolucionários dos organismos), ou seja, os mais recentes membros viventes, são as últimas soluções encontradas para esses problemas, sempre propostos pelo método de experiência e eliminação do erro. A eliminação do erro processa-se pela completa eliminação da forma malograda, com a destruição total do segmento errôneo, ou seja, pela evolução de controles que, alterando os órgãos ou formas de comportamento ou conjecturas, encontram uma resposta satisfatória para o problema.

Cada indivíduo isolado é uma ponta de lança na seqüência da evolução dos organismos de que faz parte. Em quase todos os sistemas, o organismo individual e seu comportamento desempenham a função de hipótese para solucionar problemas. Assim, o seu perecimento pode significar a eliminação do erro. O problema é a sobrevivência, e o método é a eliminação do erro, no caso, a morte do organismo.


4.


Existe um sistema no qual a eliminação do erro está sob controles capazes de eliminar o erro sem matar o organismo: é o sistema humano, no qual somos capazes de fazer hipóteses e conjecturas perecerem em vez de nós. J. Huxley diz:”Só recentemente emergimos da área biológica de evolução para a psicossocial, da biosfera terrena para a liberdade da noosfera. E não nos esquecemos o quanto isso é recente: somos verdadeiramente homens há apenas um décimo de milhão de anos - uma batida no relógio da evolução; mesmo como proto-homens, existimos há menos de um milhão de anos - menos de uma fração de dois milésimos do tempo evolutivo. Já não mais apoiados e impulsionados por um arcabouço de instintos, tentamos usar nossos pensamentos e propósitos conscientes como órgãos de locomoção e direção psicossocial através do emaranhado de nossa existência. Até agora, isso ocorreu com sucesso apenas moderado e à custa de uma produção de muita maldade e horror, ao lado de alguma beleza e a glória da consecução”.(12)

O grande momento do processo evolutivo seria aquele em que a evolução produz a atitude consciente e crítica. A interpretação popperiana desse instante permite uma certa solução para a questão da distinção entre Einstein e uma ameba. A esse propósito, Popper diz:”Admito que há uma diferença: ainda que seus métodos de movimentos de experiência e erro quase ao acaso ou à moda de nuvens não sejam fundamentalmente muito diferentes, há uma grande diferença em suas atitudes para com o erro. Einstein, diversamente da ameba, conscientemente tentou o melhor que pode; sempre que lhe ocorria uma nova solução, tentou mostrá-la falha, descobrir um erro nela: abordava suas próprias soluções criticamente. Acredito que essa atitude conscientemente crítica para com as próprias idéias é a única diferença realmente importante entre o método de Einstein e o da ameba. Ela possibilita a Einstein, com rapidez, rejeitar como inadequadas centenas de hipóteses, antes de examinar mais cuidadosamente uma ou outra hipótese que lhe parecesse capaz de suportar crítica mais seria”.(13)

A história da resolução de problemas atinge, no ser humano, seu momento de particular importância, e neste, é o desenvolvimento da linguagem o instante decisivo do processo de evolução biológica.

Jacques Monod assinala que, com base na linguagem, o ser humano passa a ter um novo fator em seu processo de evolução. Dessa forma, adquire a possibilidade de comunicar não apenas uma experiência concreta, mas um conteúdo de experiência subjetiva. Assim, as idéias passam a ser comunicáveis. Ele diz:”Uma evolução nova, a da cultura, toma-se possível. A evolução física do Homem devia prosseguir por muito tempo ainda, só que, doravante, estreitamente associada à da linguagem, sofrendo profundamente sua influência, que subvertia as condições da seleção. O homem moderno é o produto dessa simbiose evolutiva. Em qualquer outra hipótese, ele é incompreensível, indecifrável. Todo ser vivo é também um fóssil. Traz em si, e até na estrutura microscópica de suas proteínas, os traços, senão os estigmas, de sua ascendência. Isso é muito mais verdadeiro para o homem do que para qualquer outra espécie animal, em virtude da dualidade, física e "ideal", da evolução de que é herdeiro”.(14)

A linguagem não é um fenômeno exclusivamente humano. Também os animais a possuem. Mas as linguagens humanas superam, por várias razões, as linguagens animais. J. Monod afirma que:”O cérebro dos animais, indubitavelmente, é capaz não só de registrar informações, como também associá-las e restituir o resultado dessas operações na forma de uma performance individual; mas não, e este é o ponto essencial, em uma forma que permita comunicar a outro indivíduo uma associação ou transformação original, pessoal. Ao contrário, a linguagem humana permite isso, linguagem que, por definição, podemos considerar nascida a partir do dia em que combinações criadoras, associações novas, realizadas num indivíduo, puderam, transmitidas para outros, não mais perecer com ele”.(15)

Segundo Popper, os animais emitem sons que possuem duas funções inferiores. Primeiramente, reproduzem sons que podem ser entendidos como expressões ou sintomas, isto é, são expressivos dos estados do organismo que está a emitir os sons. É a função "expressiva ou sintomática" da linguagem. Em segundo lugar, esta exerce uma função "liberadora ou sinalizadora", uma vez que os sons emitidos, para ter significado de comunicação, exigem a existência de um emissor que produz os sinais, assim como a existência de um receptor que, sendo estimulado pela mensagem, reage ou responde ao som do emissor, transformando, dessa forma, esse som em sinal.

Esses dois tipos de linguagem, a "sintomática ou expressiva" e a "liberadora ou sinalizadora" são distintos. Nem toda linguagem "expressiva" é "sinalizadora", mas toda "sinalizadora" é "expressiva". São consideradas funções inferiores da linguagem, porque são comuns a seres humanos e animais; de igual forma, estão presentes nas chamadas funções superiores, utilizadas apenas pelo ser humano.

A terceira função seria a "descritiva". Ao descrevermos algum objeto, elaboramos uma linguagem com função "expressiva", já que emitimos sons. A função sinalizadora estará também presente, pois haverá, certamente, um interlocutor que receberá a mensagem, reagindo a ela. E, com certeza, existirá uma nova função nessa linguagem pois emitimos sons sobre alguma coisa, descrevendo-a ou mesmo formulando conjecturas e hipóteses a respeito das coisas, do que decorre toda a sua importância para o conhecimento científico.

A quarta função da linguagem é a "argumentativa". Sua função está diretamente ligada à atitude racional do ser humano. E como o surgimento da linguagem argumentativa está diretamente ligado ao aparecimento, em homens e mulheres, da capacidade crítica, essa função da linguagem é particularmente importante para o aparecimento das ciências.

São estas duas últimas funções da linguagem que peculiarizam a condição humana. Assim, por meio delas, foi possível ao ser humano criar conceitos tais como os de "verdade", como idéia reguladora da linguagem "descritiva", e "validez", como idéia reguladora da linguagem "argumentativa". As funções da linguagem aparecem em instantes diversos no processo biológico de evolução. Por isso, pode-se dizer que a função "descritiva" é prioritária sobre a função "argumentativa". A característica fundamental da linguagem "argumentativa" é que ela expressa uma atitude argumentativa, isto é, crítica e racional.

A importância das novas funções da linguagem fica mais evidente se acompanhamos a tese de que elas emergiram no processo evolucionário, juntamente com o ser humano e a racionalidade.

B. Magee procura captar o ponto central no argumento de Popper quando afirma:“Em outras palavras, a linguagem tomou viável o desenvolvimento da razão - melhor dizendo, foi parte integrante do desenvolvimento da razão - e permitiu a emergência do homem no seio do reino animal. (Incidentalmente, o fato de que o homem surgiu do reino animal como surgiu, passando lentamente por certas fases, significa ter ele vivido em grupos ao longo de vastos períodos; recordando esse fato, deve ser errônea a idéia, muito disseminada, de que todos os fenômenos sociais podem ser, em última análise, explicados em termos de natureza humana - com efeito, o homem foi um ser social muito antes de se transformar em ser humano). Segundo Popper, é a linguagem - no sentido de forma estruturada de contato, de comunicação, de descrição e de argumentação, por meio de símbolos, que nos torna humanos, não apenas como espécie, mas como indivíduos; a aquisição de uma linguagem é que toma possível a consciência completa do homem, a consciência do eu”.(16)


5.


Popper caracteriza o conhecimento humano como parte do processo de evolução da vida animal, no qual, partindo de algumas funções inferiores, a vida chega, em homens e mulheres, a funções superiores. Contudo, há uma profunda diferença entre a natureza da evolução animal - que se processa por meio da modificação de órgão já existente ou pela emersão de novos órgãos - e a evolução humana - que se processa pelo desenvolvimento de novos órgãos fora de nossos corpos, extrapessoalmente.

A evolução dos animais processa-se endossomaticamente. Entretanto, embora de forma rudimentar, já se esboçam entre eles modificações exossomáticas, como os ninhos dos pássaros e as tocas dos animais.

Só entre os seres humanos é que as modificações exossomáticas se tornam características. Em vez de aprimorar, realizar modificações somáticas, produzindo ou aperfeiçoando os próprios órgãos, homens e mulheres criam e 'desenvolvem novos órgãos fora de seu corpo, como óculos, telescópios, automóveis, telefones e até computadores.

A presença do ser humano no mundo é recente, se comparada com a de algumas formas de vida mais simples. As próprias modificações na natureza operadas pelo ser humano são insignificantes, se comparadas com aquelas produzidas por certas espécies vegetais, por exemplo. Contudo, o ser humano está criando um outro tipo de produto de sua própria e exclusiva fabricação, pelo qual poderá provocar incomensuráveis modificações no meio ambiente. Esses novos produtos são as idéias, os mitos e, especialmente, as teorias científicas. Popper diz:”Sugiro que podemos encarar esses mitos, essas idéias e teorias, como alguns dos produtos mais característicos da atividade humana. Como ferramentas, eles são órgãos que evoluem fora de nossa pele. São artefatos exossomáticos. Assim, podemos contar, entre esses produtos característicos, especialmente, o que é chamado "conhecimento humano"; e aqui tornamos a palavra "conhecimento" no sentido objetivo ou impessoal, em que se pode dizer que ele está contido num livro, ou armazenado numa biblioteca, ou ensinado numa universidades”.(17)

Assim, o principal produto da evolução humana é o conhecimento. Cabe, contudo, uma série de considerações sobre o significado do conhecimento científico.


6.


Podemos identificar dois significados para a palavra conhecimento. Primeiramente, conhecimento ou pensamento no sentido subjetivo, ou seja, enquanto significa um estado de espírito. Em segundo lugar, conhecimento ou pensamento no sentido objetivo, enquanto representa problemas, teorias e argumentos, sendo, portanto, considerado como um objeto pertencente ao mundo, totalmente desvinculado do sujeito conhecedor. É neste último sentido que se pode falar em conhecimento científico. O conhecimento científico constitui um mundo à parte, juntamente com as idéias, as instituições, a linguagem, a ética e as artes. É esse o mundo que, na linguagem de Popper, é identificado como "mundo 3".

A tese de Popper é que existe um "mundo 1", objetivo e constituído de coisas materiais; um "mundo 2", subjetivo, formado pelos conteúdos interiores e pelo conhecimento, existindo nas mentes dos indivíduos; e, finalmente, um "mundo 3" que, embora construído pelos seres humanos, independe amplamente deles. Até o presente momento, todas as epistemologias têm estudado o problema do conhecimento no sentido em que aqui identificamos como "mundo 2". Tanto racionalistas quanto empiristas procuram explicar o conhecimento como processo subjetivo de conhecer. Ora, por essa via jamais se conseguirá tocar nas questões fundamentais que envolvem o conhecimento científico, pois esse é fruto do "mundo 3".

O que importa para a compreensão do conhecimento científico é o estudo da situação dos problemas da ciência e das correspondentes conjeturas científicas. É necessário compreender a importância das buscas de soluções alternativas e da eficácia dos métodos de teste de que dispomos. O que importa para a epistemologia é o estudo do "mundo 3". Assim, podemos entender que uma teoria do conhecimento, no sentido que se atribui no "mundo 3", pode levar a grandes conquistas no que se refere à compreensão dos fenômenos da consciência e do conhecimento subjetivo ("mundo 2"). Não se verifica, porém, o inverso, ou seja, a epistemologia subjetivista não desvenda as dificuldades de compreensão dos problemas do conhecimento objetivo e independente do sujeito cognoscente.(18)

Popper oferece três teses de apoio a sua posição. Ele diz:”A primeira delas é que o terceiro mundo é um produto natural do animal humano, comparável a uma teia de aranha. A segunda tese de apoio (e, penso, uma tese crucial) é que o terceiro mundo é amplamente autônomo, embora constantemente atuemos sobre ele e sejamos atuados por ele: é autônomo, apesar do fato de ser produto nosso e de ter um forte efeito de retrocarga sobre nós; isto é, sobre nós como habitantes do segundo mundo e mesmo do primeiro. A terceira tese de apoio é que, por meio dessa interação entre nós e o terceiro mundo, é que o conhecimento objetivo cresce e que há estreita analogia entre o crescimento do conhecimento e o crescimento biológico, isto é, a evolução de plantas e animais”.(19)

É, portanto, sobre esse "mundo 3" que devemos prender nossa atenção, se tivermos como objetivo compreender o surgimento e o desenvolvimento do conhecimento científico. Popper identifica duas características do conhecimento objetivo, que destaca como fundamentais para seu argumento. Elas seriam a "objetividade" e a "autonomia".


7.


Popper argumenta que o conhecimento humano e, dessa forma, o conhecimento científico, são algo objetivo. Nesse sentido, constituem alguma coisa, mesmo sem a existência do cientista ou do sujeito que conhece. O conjunto de teorias, problemas e argumentos, embora seja produto do ser humano, é algo real em si mesmo, independentemente da produção e da compreensão humanas. Um livro pode ter sua existência real independentemente da ação humana, ao ser produzido por um computador. Continua a existir como uma forma de conhecimento objetivo, embora nunca venha a ser lido por alguém.

Tratando do problema da objetividade do conhecimento, Popper afirma:”Para ver isso claramente, podemos imaginar que, depois de haver perecido a raça humana, alguns livros ou bibliotecas possam ser encontrados por alguns sucessores nossos civilizados (não importa que sejam animais terrestres civilizados ou alguns visitantes do espaço exterior). Esses livros podem ser decifrados. Podem ser aquelas tábuas de logarítimos nunca antes lidas, só para argumentar. Isso toma inteiramente claro que nem sua composição por animais pensantes nem o fato de não haverem sido realmente lidos ou entendidos é coisa essencial para fazer de algo um livro, sendo suficiente que possa ser decifrado”.(20)

Outra característica fundamental do conhecimento científico e do "mundo 3" é a sua "autonomia". O conhecimento humano, embora produzido pelo ser humano, criado pelo ser pensante, cria, uma vez produzido, seu próprio domínio de autonomia. O ser humano cria o mundo do conhecimento e, especialmente, o conhecimento científico. Este, porém, por sua parte, também cria seus próprios problemas. Surgem, assim, no mundo do conhecimento científico, novos problemas, novas soluções e, até mesmo, inesperadas refutações. Essa "autonomia" do conhecimento, porém, é relativa, por ele ter sido criado por homens e mulheres.

Popper argumenta que o "mundo 3", em que se compreende justamente o conhecimento científico, é dotado de existência própria e pode existir independentemente da ação humana que lhe dá origem. Uma vez originado, é relativamente autônomo, por se circunstanciar em muitos aspectos, independentemente da ação humana. Portanto, o "mundo 3" é, justamente, o produto da criação humana, mas torna-se independente dela. Basicamente, esse produto se constitui de mitos, idéias e, especialmente, teorias científicas.

Há, contudo, um processo pelo qual nossas teorias sofrem mutações ou, se quisermos, cresce o conhecimento humano. De maneira similar ao processo de evolução biológica, o conhecimento científico, no sentido objetivo, sofre modificações pelo método da tentativa e eliminação do erro. O conhecimento corresponde a uma das formas de adaptação do ser humano ao mundo em que vive.

Essa análise biológica ou evolucionista é extremamente apropriada para explicar uma série de fenômenos próprios do progresso da ciência. Ao afirmarmos que o conhecimento racional e, portanto, o conhecimento científico são formas de o ser humano adaptar-se ao meio ambiente e, até mesmo, agir sobre ele, estamos identificando o conhecimento como forma de adaptação biológica a seu nicho ecológico.


8.


Popper argumenta que existem três níveis em que se processa a adaptação do ser humano e nesses três níveis, o processo de adaptação é sempre o mesmo(21)

I. A adaptação genética, que corresponde à mutação de um gene; isso altera a relação com o meio ambiente, do que se segue a possibilidade de novas adaptações genéticas.

II. A adaptação comportamental, que corresponde à mutação do comportamento; isso significa a mudança do próprio meio ambiente, do que se seguirão pressões no sentido de que novas alterações genéticas se processem.

III. A adaptação cognitiva, isto é, uma das formas de o ser humano adaptasse, sofrer mutações. Essa adaptação acontece por meio da produção de conhecimento científico.

Com base em problemas ou situações-problema, o ser humano propõe certas conjecturas ou hipóteses que talvez resolvam esse primeiro problema. Mas novos problemas surgirão, ainda mais profundos e comprometedores, cuja solução conjetural proporá outros ainda mais numerosos. Assim evolui o conhecimento científico.

Popper argumenta que todo o processo de adaptação parte da existência de uma "estrutura herdada", que se corresponde nos três níveis. Assim, há a "estrutura genética do organismo", que é o fundamento da adaptação genética; há o "conjunto inato de padrões de comportamento", que é o fundamento da adaptação comportamental; e, finalmente, as "teorias e conjecturas científicas vigentes", que constituem o fundamento da adaptação cognitiva. Essas estruturas herdadas são sempre transmitidas pela instrução. Assim, o ser humano é instruído genética, comportamental e cognitivamente.

Essas "estruturas herdadas" sofrem certas pressões, que exigem mutações, adaptações ou evolução. Assim, as instruções herdadas, quer geneticamente quer pela tradição, estão sujeitas a pressões, desafios e problemas e, conseqüentemente, sofrem variações. Porém, há ainda um problema a ser resolvido, pois a "estrutura herdada" sofre pressões que surgem no interior da própria estrutura, podendo ocorrer, assim, modificações ou variações nas "instruções herdadas". Cabe, ainda, indagar sobre a forma pela qual se processa a "seleção" entre mutações ou variações possíveis.

A seleção se processa pelo método do ensaio e da eliminação do erro. Assim, as tentativas não adaptadas perecem, enquanto as mais adaptadas e de maior sucesso se transmitem. Dessa forma, embora o processo caminhe para mutações solucionadoras de problemas, jamais atingimos uma solução final. Há sempre a possibilidade de uma nova mutação mais apropriada para atender as pressões exercidas sobre a estrutura. Na análise de Popper:”Cumpre notar que, via de regra, não se atinge o estado de equilíbrio adaptativo em qualquer aplicação do método da tentativa e eliminação do erro, isto é, pela seleção natural. Em primeiro lugar, porque soluções perfeitas ou ótimas para o problema dificilmente se apresentam. Em segundo lugar - e este é o ponto importante -, porque a emergência de novas estruturas ou de novas instruções provoca uma alteração da situação ambienta]. Elementos novos dos ambientes podem tornar-se relevantes: em conseqüência, novas pressões, novos desafios e novos problemas podem manifestar-se, como resultado de mudanças estruturais que surgiram de dentro do organismo.(22)


9.


A teoria da ciência inspirada nessa perspectiva evolucionista estabelece as bases para uma teoria evolutiva do progresso científico. Assim, poderíamos esquematizar o processo de evolução biológica da seguinte forma:


estrutura -> pressões -> seleção -> NOVA
herdada novas pela ESTRUTURA
pela instrução tentativa HERDADA
e erro PELA
INSTRUÇÃO


Esse esquema revela que, no processo de evolução biológica e científica, agem fatores de ordem dinâmica, revolucionária e progressista, bem como elementos de ordem conservadora, histórica ou tradicional. O jogo entre instrução e seleção evidencia a natureza do progresso científico. A instrução age como elemento conservador - ao identificar a estrutura herdada - e a seleção, como elemento dinâmico - ao indicar o sentido da evolução. Dessa forma, a evolução se processa a partir da existência de uma estrutura à qual pertence a instrução. Isso sugere que, no processo de evolução do conhecimento científico, as teorias têm prioridade sobre a experimentação. Como diz textualmente Popper:”Com efeito, sustento que não existe instrução proveniente do exterior da estrutura, ou seja, a passiva recepção de um fluxo de informações que se imprime nos órgãos dos sentidos. Todas as observações se acham impregnadas por teorias: não há observação pura, desinteressada, independente de teoria. (Para perceber que assim acontece, podemos tentar, usando um pouco de imaginação, comparar a observação feita pelo homem com a observação feita por uma formiga ou por uma aranha)”.(23)

Há, portanto, um esquema válido que representa uma descrição racional da emersão do ser humano no processo evolucionário, da autotranscendência por meio da seleção e da crítica racional.

Esse esquema torna evidente a analogia que existe entre a evolução biológica, até o surgimento do ser humano, e o processo de crescimento do conhecimento científico.

Usando "P" para a representação de problemas, "TT' para teorias ou soluções experimentais e "EE" para eliminação do erro pela discussão crítica, podemos escrever o processo evolucionário fundamental do conhecimento humano da seguinte forma:

P -> TT -> EE –> P

Contudo, esse processo não é cíclico, já que o segundo problema não se identifica com o primeiro. O segundo problema, sendo fruto de nova situação que se construiu com a proposta de soluções e eliminação de erros, certamente, terá características diferentes do primeiro. Assim, o esquema pode ser refeito para:

P1 -> TT -> EE -> P2

Com base em um problema (Pl), procuramos construir uma solução provisória, que possa ser submetida a testes, uma teoria tentativa (TT). Adotamos, a seguir, uma atitude crítica, objetivando eliminar os erros da teoria (EE). Assim, o processo evolui para a produção de um novo problema. O resultado do processo é a emersão de um novo problema, ou, o que sói acontecer de fato, de novos problemas.

Um problema inicial pode sofrer a concorrência de várias teorias ou tentativas de resolvê-lo. Todas essas teorias devem ser alvo da atitude crítica, buscando eliminar o erro que possam conter. Surgem, dessa forma, novos problemas mais profundos. Assim, o esquema poderia ser reescrito da seguinte maneira:


TTa -> EEa -> P2a
P1 -> TTb -> EEb -> P2b
TTn -> EEn -> p2n

Esse processo é de natureza evolutiva, aplica-se tanto à evolução biológica dos seres vivos como ao progresso do conhecimento científico. Popper diz:”Assim, meu esquema quádruplo pode ser usado para descrever a emersão de novas soluções, isto é, novas teorias; e quero mesmo apresentá-lo como uma tentativa de dar sentido à idéia admitidamente vaga de emersão - como uma tentativa para falar de emersão de maneira racional. Gostaria de mencionar que ele pode ser aplicado não só à emersão de novos problemas científicos e, conseqüentemente, de novas teorias científicas, mas também à emersão de novas formas de comportamento e mesmo de novas formas de organismos vivos”.(24)

Apesar da confissão de Popper(25), de haver proposto seu esquema evolucionário, ao tentar interpretar o processo trifásico da dialética tese-antítese-síntese, considerando-a como uma forma do método de tentativa e erro, podemos notar que a similaridade entre os dois processos é apenas superficial.(26) No processo dialético hegeliano, as contradições são partes integrantes do processo, não devendo, portanto, ser eliminadas; representam elementos impulsionadores do processo, não havendo lugar para a atitude crítica.

Em Conjecturas e refutações, Popper diz:”De que forma pode Hegel vencer a refutação kantiana do racionalismo? Muito simplesmente, alegando que as contradições não são importantes. Elas não podem deixar de ocorrer no desenvolvimento do pensamento da razão e demonstram a insuficiência de uma teoria que não leva em conta o fato de que o pensamento, isto é, a razão - e com ela (de acordo com a filosofia da identidade) a realidade - não é algo fixo, mas está em processo; que vivemos num mundo em evolução”.(27)

Por outro lado, no esquema evolucionário a eliminação do erro processa-se por meio das críticas que procuram identificar as contradições e eliminá-las. A eliminação das contradições significa o crescimento do conhecimento na busca da verdade. Portanto, o esquema evolucionário de Popper não pode ser entendido como análogo ao processo dialético hegeliano.

Conforme podemos depreender do esquema evolucionário, o conhecimento científico começa com problemas e termina com problemas. Inicia-se pelo problema, com todas as suas implicações. De um ponto de vista lógico, a primeira etapa do processo de conhecimento é a identificação da situação-problema. Há, contudo, certos aspectos da questão que merecem uma análise mais aprofundada.

O primeiro consiste em identificar qual a relação que existe entre problemas e teorias. E o segundo é a indagação sobre qual a relação de prioridade existente entre as teorias, ou hipóteses conjeturais, e a observação, ou teste de eliminação do erro.


10.

A primeira questão é de difícil solução, porque, embora os problemas aparentemente surjam primeiro, todo problema nasce sempre num contexto teórico. O problema teórico aparece sempre em função de um problema prático; por outro lado, a formulação de um problema prático está sempre envolvida no problema teórico. Assim, podemos chegar à conclusão de que as teorias, como soluções conjeturais para os problemas, e os problemas com os quais estamos envolvidos devem ter surgido ao mesmo tempo. Toma-se impossível, pelo menos por enquanto, separá-los.

Por outro lado, é relativamente fácil a solução do segundo problema, ou seja, o de determinar qual, dentre a teoria e a observação, é o elemento prioritário. A observação é sempre precedida por nosso interesse particular, por uma indagação, por um problema ou por uma hipótese. Portanto, há algo teórico e especulativo que precede toda experimentação. Todos os seres vivos possuem, de forma inata, certas expectativas. A posição de Popper parece clara quando afirma:”Minha tese de que a indagação, ou a hipótese, deve preceder a observação pode, a princípio, ter parecido paradoxal;'mas podemos ver agora que não é, absolutamente, paradoxal supor que expectativas - isto é, disposições para reagir - devam preceder cada observação e, de fato, cada percepção: certas disposições ou propensões para reagir são inatas em todos os organismos, ao passo que as percepções e as observações claramente não são inatas. E, embora as percepções e, mais ainda, as observações desempenhem papel importante no processo de modificar nossas disposições ou propensões para reagir, algumas dessas disposições ou propensões devem, sem dúvida, estar presentes primeiro ou, então, não poderiam ser modificadas.(28)

O argumento de Popper é que, sem que existam hipóteses funcionando como guias na busca dos resultados, torna-se impossível a observação. Assim, baseamo-nos em hipóteses que são testadas pela observação, que se fundamentam em hipóteses anteriores. Podemos regredir nesse processo até compreendermos que as mais antigas teorias científicas se constroem sobre mitos pré-científicos e explicações metafísicas. Estas, por sua vez, constroem-se com base em expectativas inatas.


11.


Outro aspecto dessa posição refere-se à relação existente entre a teoria da evolução e a teoria do conhecimento. O foco central dessa relação está em que é necessário o desenvolvimento, tanto nos seres vivos como no conhecimento humano, ou talvez seja mais preciso falar em necessidade de progresso.

Popper insiste na idéia de que o tema sobre a natureza do progresso científico não se esgota ao ser tratado apenas numa perspectiva biológica. Ele propõe que seja tratado também conforme certas exigências lógicas.

Há duas propostas de ordem lógica que devem ser analisadas. A primeira refere-se à necessidade de que a teoria proposta, para significar progresso do conhecimento científico, esteja em conflito e seja capaz de suplantar a teoria anterior.(30) Uma teoria representa tanto mais avanço da ciência quanto mais ela contradiz a teoria vigente. A contradição é a forma mais perfeita de oposição entre as proposições. A contraditória de uma proposição consiste na negação de tudo quanto ela afirma. Inexiste, dessa forma, qualquer conveniência entre duas proposições contraditórias.(31) Assim, a teoria científica que representa indiscutível progresso científico deve expressar uma perfeita oposição à teoria até então vigente. Representando uma forma menos perfeita de oposição - como contrariedade e subcontrariedade -, ela significará avanço menor no conhecimento científico. Fica estabelecido, portanto, que o progresso científico, digno de nota, é altamente revolucionário.
O argumento de Popper implica, ainda, a identificação do caráter conservador da evolução científica. A teoria que expressa o progresso da ciência deve ser capaz de explicar os problemas que eram resolvidos pelas teorias anteriores a que ela se opôs. A nova teoria deve demonstrar-se tão boa quanto a teoria anterior, mas deve ser capaz de solucionar outros fatos e casos, que se colocavam como impasse para a teoria anterior.

O progresso científico é caracterizado por sua natureza lógica ambígua. É revolucionário, por constituir o choque, a oposição entre teorias e a conseqüente superação de uma pela outra. Contudo, é também conservador, porque a teoria nova contém em si os objetivos (solução de situações-problema) da teoria suplantada. Essa caracterização lógica do progresso científico é de fundamental importância pois permite a conclusão de que o conhecimento científico mantém caráter racional, embora em processo de evolução; isto é, podemos julgar racionalmente as teorias científicas e podemos identificar as que realmente representam algum progresso do conhecimento científico. Popper diz:”O aspecto desses dois critérios lógicos, agora enunciados, é o de que permitem decidir, diante de uma teoria nova, mesmo antes de submetê-la a testes, se ela se mostrará melhor do que a teoria anterior (contanto, é claro, que resista aos testes). Isso significa, naturalmente, que dispomos, no âmbito da ciência, de algo semelhante a um critério que permite julgar as qualidades de uma teoria, tomando outras teorias como base; significa, em suma, que dispomos de meios para ajuizar do progresso. Significa, ainda, que o progresso, em ciência, pode ser racionalmente ajuizado. Essa possibilidade de julgar racionalmente o progresso explica por que, em ciência, apenas as teorias progressistas são tidas como interessantes; e explica, assim, por que, como questão de fato, a história da ciência é, em linhas amplas, uma história do progresso. (A ciência, aliás, parece o único tipo de atividade humana em que o fenômeno se constata.)”(32)

Por outro lado, a necessidade do progresso é algo inerente à própria natureza racional da ciência. Se o desenvolvimento contínuo acabasse, a ciência deixaria de ser racional e empírica.

A cada instante, novas conjecturas são formuladas para problemas talvez novos, talvez velhos. Nossas novas conjecturas são formuladas baseadas na crítica às conjecturas já existentes. Continuamente, novos experimentos são planejados, na intenção de testá-las e destruí-las. Esse processo é infinito e deverá acontecer indefinidamente, porque infinita é a ignorância do ser humano e é premente a força da necessidade de solução dos problemas.

A solução de alguns problemas coloca-nos diante de uma nova situação, que implica em novos problemas, crescendo sempre em profundidade, exigindo, assim, que nossas soluções se tomem mais sugestivas e ousadas.

Ao desenvolver essa noção de progresso em ciência, Popper afirma:”Como usei a palavra "progresso" várias vezes, será melhor garantir que não serei visto como um crente na lei histórica do progresso. Na verdade, já tive várias oportunidades de atacar essa crença e sustento que mesmo a ciência não está sujeita a qualquer coisa parecida. A história da ciência, como a história de todas as idéias humanas, é feita de sonhos irresponsáveis, de erros e de obstinação. Mas a ciência é uma das poucas atividades humanas - talvez a única - em que os erros são criticados sistematicamente (e com freqüência corrigidos). Por isso, podemos dizer que, no campo da ciência, aprendemos muitas vezes com nossos erros; por isso, podemos falar com clareza e sensatez sobre o progresso científico. Na maior parte dos outros campos de atividade do homem, ocorrem mudanças, mas raramente há progressos - a não ser em uma perspectiva muito estreita de nossos objetivos neste mundo. Quase todos os ganhos são neutralizados por alguma perda e quase nunca sabemos como avaliar as mudanças”.(33)


12.


Essa concepção de progresso científico, proposta por Popper, seria incompleta sem uma análise das características lógicas do sentido do progresso na ciência. Em outras palavras, a noção de progresso científico implica a identificação dos elementos componentes de uma boa teoria científica, antes de ser submetida a certos testes tidos como cruciais. Em última instância, coloca-se o problema da identificação do critério de progresso, ou seja, do critério para a escolha racional entre teorias. Popper chamou-o de "critério de satisfatoriedade potencial relativa". E, após afirmá-lo como princípio simples e intuitivo, caracterizou-o como aquele que nos permite preferir a teoria que afirma mais coisas.(34)

Considera-se potencialmente preferível a teoria cujo conteúdo informativo é superior ao das teorias concorrentes. Chama-se conteúdo informativo, para distinguir de conteúdo lógico (classes de todas as conseqüências lógicas deduzíveis do enunciado ou teoria), a noção intuitiva de que os enunciados ou teorias têm maior poder explicativo e preditivo quanto maior for seu grau de proibição ou exclusão, ou seja, tanto mais afirmam quanto mais proíbem ou excluem. Dessa forma, podemos concluir que se entende por conteúdo informativo de uma teoria o conjunto de enunciados que se mostram incompatíveis com a mesma teoria. Esses enunciados é que se constituem em falseadores potenciais da teoria, e esta terá caráter dogmático e não científico, se essa classe de proposições estiver vazia. Neste último caso, a teoria não será falseável.(36) Assim, a teoria de maior conteúdo informativo é aquela que pode ser mais severamente testada com os dados da observação, constituindo, contudo, a teoria mais conjetural, mais ousada e informativa. À medida que aumentamos ou diminuímos a quantidade de informações de uma teoria, concomitantemente, aumentamos ou diminuímos seu conteúdo informativo e seu conteúdo lógico.

Desenvolvendo esse mesmo argumento Hermann Bondi afirma:”Quando se formula uma teoria, fazem-se afirmativas universais, gerais. Uma vez submetida a teste, sabemos que a teoria abrange certa gama de fenômenos, certa gama limitada, dentro de limitada medida de acuidade e precisão. A interpretação da teoria, como algo que é Verdade, com "V" maiúsculo (expressão que, a meu ver, não tem qualquer relação com a ciência), esta pode sofrer abalo. Naturalmente, buscar-se-á descrição melhor, que abranja campo mais amplo de fenômenos com maior precisão, mas que seja, também, refutável. Se não for refutável, não terá interesse científico. Assim, a natureza do progresso está em que seus pontos cruciais correspondem mais a abalos do conhecimento do que a ganhos de conhecimento. Estaria, contudo, errado, se dissesse que o ganho de conhecimento não é, por sua vez, progresso. Ocorre, apenas, que o ganho de conhecimento não é a linha direta para o progresso”.(37)

Portanto, existe uma relação necessária entre conteúdo lógico e informativo. Acompanhando a exposição de Popper, podemos apresentar o seguinte exemplo: tomemos a teoria gravitacional de Newton ("N"). Dessa forma, qualquer enunciado incompatível com "N" pertencerá ao conteúdo informativo de "N". Tomemos, a seguir, a teoria da gravitação de Einstein ("E"); como essa teoria é incompatível com "N", ela faz parte do conteúdo informativo de "N". Do que, se ambas se proíbem, ambas se pertencem. Dentro de um prisma lógico de análise, teríamos: se "E" pertence ao conteúdo informativo de "N", segue-se que não-"N" pertence ao conteúdo lógico de "E" e não-"E" pertence ao conteúdo lógico de "N"; logo, não-"E" decorre de "N" e não-"N" decorre de "E". Portanto, todo esse raciocínio seria impossível sem a descoberta e formulação de "E".

Seria impossível compreender totalmente a teoria gravitacional de Newton sem a formulação da teoria gravitacional de Einstein.(38) Do que se conclui que a teoria somente atinge toda a sua compreensão quando são identificados todos os infinitos enunciados que constituem seu conteúdo informativo e quando são descritas todas as infinitas conseqüências que seriam deduzíveis da teoria em questão. Ora, tal obra é impossível de realizar. Diz Popper:”Essa situação curiosa tenho descrito em minhas preleções, afirmando: nunca sabemos acerca de que falamos. De fato, quando formulamos uma teoria ou procuramos entender uma teoria, também formulamos ou tentamos compreender suas implicações lógicas, isto é, todos os enunciados que dela decorrem. Todavia, como sublinhamos, semelhante tarefa é impossível de concretizar: há uma infinidade de enunciados não-triviais impredizíveis, que fazem parte do conteúdo informativo de uma teoria, e uma correspondente infinidade de enunciados, que fazem parte de seu conteúdo lógico. Não é possível, pois, conhecer ou compreender todas as implicações de uma teoria ou sua plena significação.(39)

Portanto, chegamos, até aqui, à conclusão de que, por meio de revoluções e cumulações, o conhecimento científico evolui no sentido de novas teorias, mais ousadas e portadoras de maior conteúdo informativo. A conseqüência é que a ciência progride na direção de teorias cuja probabilidade (no sentido matemático) é decrescente. Conforme constatamos, a evolução do conhecimento se processa no sentido de novas teorias de conteúdo informativo crescente; ora, isso implica que avançamos em direção a teorias de probabilidade cada vez menor.

Portanto, alta probabilidade e teorias mais informativas são incompatíveis entre si. Popper emprega um interessante raciocínio matemático para evidenciar sua proposta. Assim, a expressão do cálculo de probabilidade indica que

P(a) > P(ab) < P(b)

A probabilidade de "a" é igual ou maior do que a probabilidade de "a+b". A probabilidade de "a+b" é igual ou menor do que a probabilidade de "b". Por outro lado, se compararmos os enunciados "na sexta-feira choverá" (a); "no sábado fará tempo bom" (b) e "na sexta-feira choverá e no sábado fará tempo bom" (ab) é óbvio que o conteúdo informativo de "ab" é maior do que o de seu componente "a" e o componente "b"; também é óbvio que a probabilidade de "ab" será menor do que a probabilidade de qualquer um dos seus componentes, "a" ou "b". Isto é, a probabilidade de que na "sexta-feira chova" é igual ou maior do que a probabilidade de que na "sexta-feira chova e no sábado faça tempo bom"; a probabilidade de que na "sexta-feira chova e no sábado faça tempo bom" é igual ou menor do que a probabilidade de que "no sábado faça tempo bom".(40)

Chegamos, portanto, à conclusão de que a ciência evolui no sentido de proposições improváveis. Dessa forma, a teoria cujo conteúdo informativo fosse infinito, seria a verdade absoluta, portanto, de probabilidade O (zero); por outro lado, a teoria cujo conteúdo informativo fosse tendente a zero teria probabilidade tendente a 1 (um), portanto, seria necessária. Um enunciado se torna tanto mais necessário quanto menos informar, e tanto menos provável quanto mais ilustrar o conhecimento. Em Popper, podemos encontrar a seguinte colocação:”Visamos assim, na ciência, um conteúdo informativo elevado, se o progresso do conhecimento quer dizer sabermos mais (sabermos "a" e "b" e não apenas "a"), aumentando assim o conteúdo das nossas teorias. Precisamos admitir, portanto, que almejamos a baixa probabilidade - no sentido do cálculo de probabilidade. Como uma baixa probabilidade significa uma alta probabilidade de refutação, segue-se que um grau elevado de refutabilidade ou testabilidade é um dos objetivos da ciência - na verdade, é o mesmo que o elevado conteúdo informativo. O critério de adequação potencial é, por conseguinte, a testabilidade ou improbabilidade: só merecem ser testadas (e não apenas potencialmente) as teorias satisfatórias, se passarem em testes rigorosos - especialmente aqueles que reconhecemos como cruciais antes mesmo de efetuá-los”.(41)


Conclusão


Ao final deste capítulo, é importante destacar algumas conclusões dos argumentos de Popper. Segundo ele, os problemas precedem as soluções e esse seria o processo evolutivo biológico e gnoseológico. Biologicamente, ele se expressa na prioridade da expectativa sobre a observação e, gnoseologicamente, significa a anterioridade das hipóteses sobre as soluções observáveis. Do que se conclui que o crescimento do conhecimento resulta de um processo de seleção das hipóteses mais aptas. O conhecimento cresce de velhos problemas para novos problemas, por meio de conjecturas e refutações.

Pode-se expressar o crescimento evolucionário das espécies vivas da seguinte forma:

P1 -> TT -> EE -> X
-------------------
evolução biológica


As espécies vivas, ao se depararem com um problema (Pl), ensaiam soluções tentativas (TT); pela eliminação de possíveis erros (EE), procuram ajustar suas soluções aos problemas imperantes. Se a eliminação do erro (EE) resulta na eficiência da solução proposta (TT) temos, então, um novo problema mais profundo. Contudo, se a tentativa fracassa, a espécie pode perecer (X). Como conseqüência disso, o fim do processo evolucionário nos seres vivos é sempre uma incógnita.

Por outro lado, o crescimento evolucionário das teorias pode ser indicado no seguinte'esquema:(42)

P1 -> TT -> EE -> P2
---------------------------
crescimento do conhecimento

Segue-se da posição de Popper que, a partir de um problema (P1), após a tentativa de solução por meio de hipóteses e conjecturas (TT) severamente testadas (EE) no sentido da eliminação do erro, teremos sempre um novo ou novos problemas (P2). Do que se conclui que somos falíveis e propensos ao erro, mas podemos aprender com nossos enganos. Nossas teorias são conjecturas ousadas que não podemos justificar, mas que podemos criticar racionalmente, adotando as que possuem maior poder explicativo.

Portanto, nos organismos vivos, a evolução se processa de forma peculiar: eles evoluem tateando soluções e, via de regra, os ensaios errôneos são corrigidos com a eliminação do organismo portador do engano. No ser humano, porém, a vida gerou um ser capaz de quebrar essa cadeia de violência.

Segundo Popper, a racionalidade crítica aparece nos homens e mulheres como um instrumento de sobrevivência. Ele afirma:”Faz parte de minha epistemologia que, no homem, pela evolução de uma linguagem descritiva e argumentativa, tudo isso foi radicalmente mudado. O homem atingiu a possibilidade de ser crítico de suas próprias tentativas, de suas próprias teorias. Essas teorias já não são incorporadas em seu organismo ou em seu sistema genético; podem ser formuladas em livros ou em jornais; e podem ser discutidas criticamente e demonstradas como errôneas, sem a necessidade de matar seus autores ou queimar qualquer livro, sem destruir seus "portadores". Nesse sentido, possuímos uma nova possibilidade: nossos ensaios, nossas hipóteses tentativas podem ser criticamente eliminados pela discussão racional, sem necessidade de que sejamos eliminados. Esse é, sem dúvida, o propósito da discussão racional”.(43)

Com a possibilidade da crítica racional, o ser humano pode ensaiar, testar e alterar as propostas de solução irracional. Por meio do conhecimento humano, pode-se tornar obsoleto o uso da violência. Essa é a grande conclusão da epistemologia popperiana, e é nisso que, em relação às epistemologias do século XIX, ela se posiciona de forma original. O evolucionismo é uma maneira que Popper encontra para dar contornos realistas a sua epistemologia. É justamente em função de tais pressupostos que Popper pode assegurar que a razão crítica é a única alternativa de que dispomos, até agora, para a violência.


Notas e referências


1. POPPER, KARL R. Autobiografia intelectual. São Paulo, Cultrix/Edusp, 1977, p. 87.

2. MONOD, JACQUES. "A propósito da teoria molecular da evolução", in ROM HARRÉ (org.) Problemas da revolução científica. São Paulo, Itatiaia/Edusp, 1976, p, 36.

3. POPPER, KARL R. op. cit., p. 179.

4. Idem, ibidem, p. 177.

5. Idem, ibidem, pp. 181-182.

6. Idem, ibidem, p. 183.

7. MONOD, JACQUES. O acaso e a necessidade. Rio de Janeiro, Vozes, 1971, p. 144.

8. POPPER, KARL R. op. cit., p. 184.

9. HUXLEY, JULIAN. Ensaios de um humanista. Rio de Janeiro, Labor do Brasil, 1977, p. 71.

10. POPPER, KARL R. op. cit., p. 187.

11. Idem, Conhecimento objetivo. São Paulo, Itatiaia/Edusp, 1975, p. 221.

12. HUXLEY, JULIAN. op. cit., pp. 106-107.

13. POPPER, KARL R. op. cit., p. 226.

14. MONOD, JACQUES. op. cit., p. 179.

15. Idem, ibidem, p. 147.

16. MAGEE, BRYAN. As idéias de Popper. São Paulo, Cultrix/Edusp, 1974, pp. 63-64.

17. POPPER, KARL R. op. cit., pp. 261-262.

18. Idem, ibidem, p. 152.

19. Idem, ibidem, p. 114.

20. Idem, ibidem, p. 117.
122

21. Idem, "A racionalidade das revoluções científicas", in ROM HARRÉ (org.) Problemas da revolução científica. São Paulo, Itatiaia/Edusp, 1976, pp. 92 ss.

22. Idem, ibidem, p. 94.

23. Idem, ibidem, p. 98.

24. Idem, Conhecimento objetivo. São Paulo, Itatiaia/Edusp, 1975, p. 264.

25. Idem, Autobiografia intelectual. São Paulo, Cultrix/Edusp, 1977, p. 140.

26. Idem, Conhecimento objetivo. São Paulo, Itatiaia/Edusp, 1975, pp. 126-127.

27. Idem, Conjecturas e refutações. Brasília, Unb, 1981, p. 357.

28. Idem, Conhecimento objetivo. São Paulo, Itatiaia/Edusp, 1975, p. 316.

29. Idem, ibidem, pp. 320 ss.

30. Idem, "A racionalidade das revoluções científicas", in ROM HARRÉ (org.) Problemas da revolução científica. São Paulo, Itatiaia/Edusp, 1976, pp. 102 ss.

31. MARITAIN, JACQUES. Lógica menor. Rio de Janeiro, Vozes, 1971, pp. 134 ss.

32. POPPER, KARL R. "A racionalidade das revoluções científicas", in ROM HARRÉ (org.)Problemas da revolução científica. São Paulo, Itatiaia/Edusp, 1976, p, 103.

33. Idem, Conjecturas e refutações. Brasília, Unb, 1981, p. 242.

34. Idem, ibidem, pp. 242 ss.

35. Idem, Autobiografia intelectual. São Paulo, Cultrix/Edusp, 1977, pp. 32 ss.

36. Idem, A lógica da pesquisa científica. São Paulo, Cultrix/Edusp, 1975, pp. 88 ss.

37. BONDI, HERMANN. "Que é progresso em ciência?", in ROM HARRÉ (org.) Problemas da revolução científica. São Paulo, Itatiaia/Edusp, 1976, p. 20.

38 S.POPPER, KARL R. Autobiografia intelectual. São Paulo, Cultrix/Edusp, 1977, pp. 33-34.

39. Idem, ibidem, p. 34.

40. Idem, Conjecturas e refutações. Brasília, Unb, 1981, p. 243.

41. Idem, ibidem, p. 245.

42. BOUVERESSE, RENÉE. Kart Popper. Paris, Vrin, 1978, p. 134.

43. POPPER, KARL R. De Vienne a Francfort - La querelle allemande des sciences sociales. Paris, Complexe, SPRL, 1979, p. 240.
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13 comentários:

Prof. Luis A. Peluso disse...

Caros alunos,
Depois de ler o texto, faça um comentário de 15 linhas.

Rodrigo Santiago disse...

O texto propõe refletir sobre algumas das idéias de Karl Popper sobre o pensamento lógico e racional e seu desenvolvimento. Segundo ele, o progresso científico é inerente à racionalidade da ciência e, sem ele, esta não existiria da maneira que conhecemos. O desenvolvimento científico não se constrói pelo acumulo de informações ou por idéias geniais e sim, pela substituição de teorias antigas por teorias novas.Desse princípio, ele traça um paralelo com a teoria darwinista ou teoria da evolução. Segundo esta a vida evolui por “tentativa e eliminação do erro”. Mesmo assim, ela não seria uma lei, mas apenas uma teoria, já que o essencial para o indivíduo não seria evoluir e sim a sua capacidade de conservar características. O paralelo entre conhecimento racional e o darwinismo ganha um elemento novo graças a intervenção do ser humano: a linguagem. Ela permite a comunicação, que pode ser descritiva, argumentativa e, principalmente, crítica. Essa crítica permite a construção de novas teorias descritivas.Popper também afirma que o darwinismo é metafísico e, desta forma, não é cientifico, já que não é suscetível à prova. Ainda sim, o darwinismo é capaz de auxiliar na compreensão das ações dos seres vivos.Sendo o conhecimento a sobreposição de teorias ao longo do tempo, ele adquire uma dimensão histórica tendo portanto estágios intermediários, provocados por mudanças situacionais.Estas mudanças podem ser de ordem externa e interna. A primeira é provocada pelo ambiente e ajuda a determinar o comportamento. A segunda é a pressão seletiva que advém do próprio organismo e a ajuda a determinar a anatomia e também o comportamento, este último, formado por nossas habilidades, preferências e finalidades. Dessa forma, o indivíduo adapta-se em três níveis: na genética, no comportamento e na cognição. Nesta última, o ser humano se adapta através das mutações ocasionadas pelo progresso científico. Assim o indivíduo possui uma “estrutura herdada” articulada nesses três níveis adaptativos. Essa estrutura sofre pressões que exigem as mutações, provocando a seleção pela tentativa e erro e assim originando uma nova estrutura herdada. Ainda de acordo com Popper, os problemas precedem as soluções e o conhecimento racional seria a seleção de hipóteses mais adequadas para resolver os problemas apresentados, fazendo surgir novos problemas. Porém, ao contrário do darwinismo, que elimina o organismo “errado”, o conhecimento significa discutir racionalmente as hipóteses, sem que elas sejam realmente eliminadas. O ser humano seria assim capaz de ser crítico de suas próprias tentativas.

Dono do blogg disse...

O processo científico é de certa forma análogo ao processo de seleção natural proposto por Darwin. Na realidade a “teoria da evolução” está mais para uma “lógica situacional” do que para uma teoria propriamente dita, já que a eliminação do erro por intermédio de tentativas é algo mais no sentido de “lógico” do que no sentido de “biológico”, pois na natureza tende-se a conservar os caracteres hereditários, ao invés de haver mutações.
Percebe-se que assim como os seres vivos as idéias e teorias se defrontam e competem (a teoria mais consolidada prevalece), sofrem mutações (ao se adicionarem novas idéias a teorias já estabelecidas), se reproduzem (ao serem difundidas pela comunicação) e a eliminação do erro propicia um avanço evolutivo, e indica que esse processo é infinito.
A linguagem também sofreu o processo de seleção, juntamente com o ser humano. As funções descritivas e argumentativas proporcionam ao ser humano a capacidade de desenvolver idéias mais avançadas e transmiti-las ao próximo. O ser humano desenvolveu, portanto, “órgãos exossomáticos” que evoluem, mas que não trazem modificações em sua fisiologia. Estes órgãos seriam as teorias, conjecturas e idéias que constituem o “mundo 3” proposto por Popper. O “mundo 3” é autônomo o suficiente para que em seu núcleo hajam novas indagações e novas soluções, reforçando portanto a idéia de que a procura por conhecimento é interminável.
A teoria do “mundo 3” de Popper, além de justificar a teoria sobre objetividade científica e progresso científico, tem entre suas aplicações práticas a de justificar o pacifismo, já que as idéias são independentes do sujeito cognoscente, o que faz com que não se tenha necessidade de eliminar o indivíduo que defende determinadas idéias, sendo que já bastaria refutá-las, e não julgar as idéias a partir da pessoa que a concebeu.
As teorias anteriores praticamente não possuíam caráter prático e algumas ainda não dissociavam o sujeito e as idéias (e) ou utilizavam de forma muito agressiva as teorias evolucionistas, que acarretavam na conclusão de que o sujeito deveria ser aniquilado para que os erros “morressem” juntamente com ele.
Foi importante também a importância dada ás teorias consideradas ousadas e que até o momento são consideradas corretas, pois quanto mais abrangente (com relação ao seu “domínio de validade”) e mais “criativa” a nova teoria for em contraposição á antiga, maior é o avanço científico.

Ale disse...

Popper traça uma comparação entre o conhecimento científico e a teoria evolucionista, que seria entendida como uma lógica situacional em que a vida evolui por tentativa e eliminação do erro.
Os seres vivos conseguem evoluir e ao mesmo tempo se manter, caso necessário. Tendo como forma de reprodução a idêntica ou àquela que sofre alguma modificação estrutural, caso necessário. Tal pensamento seria totalmente aplicável às teorias, sendo o segundo dado por refutações. Assim, quando um organismo (ou uma tese) morre (é refutada) ocorreria o método da eliminação do erro.
Todo esse acontecimento dá-se no mundo 3, já descrito por Popper e discutido nos demais textos, e por os mundos conseguirem ser autônomos entre si, podemos concluir que realmente "há vida nas ideias", de tal forma que elas "vivem, evoluem e morrem". E mesmo que em algum caso o mundo 1 e o mundo 2 deixem de existir, o mundo 3 sempre existirá e haverá a possibilidade de fazer com que alguém, de alguma forma, possa voltar a alcançá-lo, se assim desejar.
Popper também afirma que o ser humano passa por três tipos de adaptações: genética, comportamental e cognitiva. A estrutura herdada por um ser humano passa por essas adaptações por pressões postas pelo organismo, pelos padrões comportamentais e pelas "teorias e conjecturas científicas vigentes". Assim dá-se a evolução e a eliminação do erro, mas não garante o equilíbrio adaptativo.
O esquema evolutivo segue de mesma forma para as teorias, iniciando pelo problema (tese, hipótese), passando por pressões (teorias), evoluindo e superando a eliminação (passando por testes e refutações), chegando ao final em novo problema [que passará pelos mesmos processos, mostrando a constante evolução, o ciclo infinito (da mesma forma que com seres vivos)].
Assim temos o progresso da ciência, e concluimos que por uma teoria ter evoluido e não ter sido "eliminada" ela pode responder melhor a certos problemas que as teorias anteriores. Isto nem sempre é verdade, pois apesar ter passado por processos adaptativos, nada garante que tenha atingido o seu equilíbrio e este fato separa a teoria do conhecimento da teoria evolucionista, aqui não há eliminação do erro, temos sempre um cuidado em fazer as análises para que possamos ter uma teoria que melhor responda aos problemas como um todo, mas pela dificuldade do caso, sempre temos as teorias precedentes para análise, por vezes deixadas de lado, mas jamais eliminadas.

Giuliano disse...
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Giuliano disse...

A idéia principal do texto é delimitar os padrões sempre citados agora sobre o avanço científico. Popper, mais uma vez cita idéias inovadoras quanto à ciência e seu entorno, continuando a idéia do mundo 3 em que o mundo das idéias é adverso ao mundo físico e implementando a chave para o entendimento do Racionalismo Crítico. O avanço infinito na busca pelo conhecimento.
O conceito básico faz analogia com o avanço biológico e traz por sua vez, uma estrutura base, sendo: Problema1 +Teoria Tentativa + Eliminação de Erros = Problema2.
O Problema2 elimina, a principio, os erros do Problema1, mas continua como um problema existente a ser resolvido. Com isso podemos concluir brevemente que como, para a resolução dos problemas, fazendo uma teoria com alto grau informativo, devemos ter também uma baixa probabilidade, isto é, aumento na refutabilidade de uma teoria, sendo esta uma boa teoria. Com essa idéia, supomos que a verdade absoluta tem probabilidade 0 de ocorrer.
Podemos concluir também, que o conhecimento é infinito, tendo seu avanço decorrente de críticas as teorias aceitas no momento. Sendo esta a Base clássica do Racionalismo Critico.

Prof. Luis A. Peluso disse...

Caro Rodrigo,
Seu texto é muito bom. É um excelente resumo de algumas passagens do Capítulo 8. Quem sabe, em algum momento, vc. decide postar algumas considerações que expressem suas idéias sobre aquilo que os textos contêm.

ney carvalho disse...

O processo evolutivo não rege somente as leis biológicas mas também as leis da filosofia, isso segundo Popper ,a evolução das teorias é um exemplo disso, onde somente teorias mais fortes e resistentes a testes são sustentadas e assim sobrevivem, ainda ressalta Popper que a relação entre as teorias do conhecimento cientifico e a teoria evolucionista são indissociáveis.
Mesmo admitindo que a teoria evolucionista tem aspectos positivos , ele faz criticas a essa teoria classificando-a como programa de pesquisa metafísica, e apresenta vários aspectos que o permite concluir que essa teoria é mais lógica do que biológica, e que essa teoria não é suscetível de prova, uma vez que não consegue explicar a evolução em varias formas de vida.
Popper caracteriza o conhecimento humano como principal parte do processo de evolução. Ao invés dos homens criarem órgãos internos para sua utilização, como nos outros animais, nós criamos órgãos externos, classificando-as como ferramentas.

IRS disse...
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IRS disse...
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IRS disse...
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Unknown disse...

Achei a comparação de Popper do crescimento do conhecimento científico com a evolução muito interessante. De fato parece que a ciência evolui no sentido darwiniano por tentativa e erro. As teorias quando falseadas são extintas, e a nova teoria capaz de explicar aquilo que a antiga não era capaz de explicar, assim como tudo o que era, prevalece. De modo análogo o organismo que não é capaz de solucionar o problema com o qual se depara é extinto (falseado) e aquele que consegue prevalece. A teoria do mundo 3 também é outra que chama bastante atenção. Um exemplo interessante que consigo lembrar, embora não seja relacionado a ciência, é o da bíblia. Mesmo antigamente, quando o cristianismo ainda não havia chegado a Roma, num tempo mais próximo da criação da bíblia já haviam teorias divergentes sobre a natureza de Deus. Seguramente quem escreveu a bíblia tinha uma idéia bem definida daquilo que estava escrevendo. Ele conhecia o Deus que descrevia, sabia se o que estava escrito eram metáforas ou não, etc. Mas tudo isso pertence ao mundo 2, sua mente. Após escrever a bíblia se tornou parte do mundo 3. E muitas visões diferentes surgiram sobre o significado do que estava escrito. Alguns continuaram achando que Deus era bom, enquanto outros cultos gnósticos se perguntaram porque o mundo era imperfeito se Deus era perfeito, e chegaram a conclusão que quem havia feito o mundo não foi o Deus perfeito, mas um deus imperfeito criado pelo Deus perfeito, e ainda outros chegaram a conclusão que Deus deveria na verdade ser um ser maligno, dada a sua personalidade violenta e autoritária na bíblia. Enfim, a idéia ganhou vida própria.

Ana Valle disse...

Popper faz um comparativo entre a teoria da evolução e o desenvolvimento do conhecimento científico. Na teoria da evolução, a vida evolui por “tentativa e eliminação do erro”. Há a seleção natural, onde o mais forte sobrevive enquanto os mais fracos morrem, há as mutações, onde determinadas características mudam, e a hereditariedade, onde as características serão passadas adiante. No conhecimento científico, somente as teorias mais fortes e resistentes a testes são sustentadas, assim como as hipóteses mais resistentes irão prevalecendo. O conhecimento científico permite a construção de novas teorias descritivas, mais ousadas e portadoras de maior conteúdo informativo.
O grande momento do processo evolutivo seria aquele em que a evolução produz a atitude consciente e crítica. Um elemento que merece destaque é o surgimento da linguagem na evolução do Homem. Apesar dos animais também possuírem a linguagem, ela não é tão avançada. Ela pode ser descritiva, argumentativa e crítica, além disso, torna possível a comunicação não apenas de uma experiência concreta, mas de um conteúdo de experiência subjetiva. Desta forma, idéias podem ser partilhadas, teorias podem ser reproduzidas, hipóteses podem ser discutidas.
Enquanto a linguagem pode ser responsabilizada pela aceleração do desenvolvimento científico, a adaptabilidade do ser humano é afetada por este progresso, já que o indivíduo adapta-se em três níveis: na genética, no comportamento e na cognição. Para esta adaptação, mutações podem ocorrer, que podem ser de origem externa (meio ambiente) ou interna (próprio organismo), mas, diferentemente do darwinismo, onde as características mais fracas perecem, no conhecimento, as hipóteses são primeiramente discutidas e não necessariamente eliminadas. Após fazer a leitura deste texto, percebi mais uma vez o quanto o erro é importante, e tem papel fundamental na evolução dos seres vivos e na evolução da ciência.